segunda-feira, 22 de agosto de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




O “Som Livre” tinha participação fixa de Os Mutantes e das revelações do MAU — Movimento Artístico Universitário — Gonzaguinha, César Costa Filho, Aldyr Blanc e Ivan Lins, além de convidados especiais. Alguns especialíssimos, como Caetano Veloso, que recebeu uma autorização especial do governo para participar do programa e passar uns poucos dias na Bahia, onde fui entrevistá-lo para a TV Globo e matar saudades. A entrevista foi meio frustrante: quase tudo o que eu gostaria de perguntar ele não poderia responder. Mas na gravação do programa, no Rio, ele surpreendeu o auditório jovem e roqueiro, que esperava dele algo elétrico, pesado, mais próximo de Os Mutantes do que de Elis e Ivan Lins. Ao contrário, sem gritos e nem guitarras, apenas se acompanhando ao violão, Caetano cantou, radicalmente gilbertiano, um antigo e belíssimo samba de Synval Silva, gravado por Carmen Miranda. Um clássico da música brasileira, uma obra-prima popular que quase ninguém naquele auditório conhecia. Foi um espanto: “Adeus, adeus, meu pandeiro de samba, tamborim de bamba já é de madrugada vou me embora chorando com meu coração sorrindo...” E voltou para o exílio.

Eu estava sempre com Elis, nos ensaios, gravações e viagens com o “Som Livre exportação” para Belo Horizonte, Brasília e outras capitais. No Rio, de manhã cedo, nos encontrávamos secretamente no apartamento de um casal amigo, André Midani e Márcia Mendes, a mais bonita e popular apresentadora da TV Globo, minha colega no telejornal “Hoje”. Ou então à tarde, na casa de Rogério, irmão de Elis, que detestava Ronaldo e nos protegia e dava cobertura. Mas resisti muito pouco tempo à vida dupla e, soterrado de culpa, achei que resolveria metade do problema me separando de Mônica e saindo de casa, que deixei para ela e Joana com tudo o que tinha dentro. Fui morar na Lagoa, na cobertura do amigo Tato Taborda, um dos editores da Última Hora, onde já moravam duas outras amigas, Sônia Dias e Marta Costa Ribeiro, também recém-separadas. O apartamento era um imenso duplex de cinco quartos, onde Tato vivia com a mulher, a jornalista Elizabeth Carvalho, e um filho adolescente, e se transformou em uma espécie de comunidade de divorciados. Nos fins de semana, o apartamento se enchia de amigos, e as viagens de ácido coletivas eram frequentes, baseados rolavam permanentemente, Cat Stevens cantava horas seguidas no toca-discos, garças revoavam na Lagoa.

Elis começou a fazer análise com Hélio Pellegrino, se queixava cada vez mais de Ronaldo, dizia que ia se separar e, embora eu não perguntasse, várias vezes me disse que já tinha falado com o advogado Haroldo Lins e Silva para tratar do divórcio. Mas nada mudava, tudo
continuava secreto e cada vez mais perigoso. Cada vez mais envolvido, eu sofria, não só de culpa, mas de ciúmes de Ronaldo. Em abril foi lançado o Lp Ela, que gravamos durante o verão. Além da bela e sombria canção de César Costa Filho e Aldyr Blanc que dava título ao disco e de uma música nova e agressiva de Erasmo e Roberto, “Mundo deserto”, Elis gravou os Beatles pela primeira vez — “Golden Slumbers” —, numa de suas grandes performances em disco. E duas de Caetano, o fado “Argonautas”, e uma regravação audaciosa, “Cinema Olympia”, já gravada por Gal Costa espetacularmente e aclamada por crítica e público. Elis demorou bastante até aceitar o desafio e quando entrou no estúdio produziu uma interpretação vibrante, rasgada, roqueira. Pena que o arranjo de Erlon Chaves, gravado depois sobre a base, fosse totalmente equivocado (tinha até violinos em pizzicatto!) e nem ela nem seu produtor, talvez ocupados em namorar, se deram conta.

Os timbres e frases musicais eram antigos, jazzísticos, em total desconexão com a modernidade roqueira da música e, sem querer, ou por querer demais, Elis acabou fazendo apenas um “cover” pobre do sucesso de Gal. Dois sambas de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, ainda na linha “trator na margarida”, adequadíssimos ao atual momento de guerra conjugal de Elis, garantiram o sucesso no rádio: “Aviso aos navegantes” e “Falei e disse”. Mas a música mais polêmica era dos louríssimos irmãos Valle, “Black Is Beautiful”, uma estupenda balada soul de Marcos com uma letra provocativa e talvez um pouco excessiva de Paulo Sérgio. Elis soltava a voz em vibrato, como uma negona americana: “Eu quero um homem de cor, um rei negro do Congo ou daqui. Que se integre com meu sangue europeu. Black is beautiful, black is beautiful, black beauty is so peaceful, I wanna a black, a beautiful.” No seu conceito básico e na abertura de seu repertório, o disco era muito parecido com o anterior e, mesmo bem-sucedido, não teve tanto sucesso, embora fosse tão bom quanto. Elis sabia disso e estava feliz. Eu também. Mas por pouco tempo. Durante esses poucos meses em que estivemos tão juntos nunca houve qualquer briga ou bate-boca entre nós, por qualquer motivo, pessoal ou artístico. Conhecendo Elis e seu estilo, eu pensava às vezes em um milagre de amor. E em um encontro de interesses: eu estava mergulhado e ligado no movimento jovem internacional, nas profundas transformações por que passava a música no mundo, ansiava obsessivamente ir adiante, quebrar barreiras, abrir portas e janelas na cabeça e no coração oprimidos pela repressão política. Ela queria aprender, queria ir junto com sua geração para um lugar que não conhecia, queria ampliar seus limites, abrir seus horizontes, seu coração e sua voz.

Estava ficando cada vez mais difícil manter o romance em segredo. Eu tinha certeza que Ronaldo já sabia. E mais ainda quando me falaram da reação dele, ao saber dos boatos sobre o meu namoro com Elis. O “Véio” fuzilou de bate-pronto, no seu melhor estilo: “Finalmente Elis encontrou alguém à sua altura.” Touché. Mesmo incendiado de raiva e de ciúmes dele, do alto de meus 1,67m explodi numa gargalhada. Mas a alegria durou pouco. Numa manhã cinzenta de outubro, depois de passar a noite com Elis, deixei-a em casa e fui trabalhar. Tínhamos planejado uma viagem “secreta” para Londres, o paraíso de liberdade e modernidade de nossa geração. Na hora do almoço, Elis telefonou. Dura, seca, formal, com a
voz mais grave do que nunca, estranhíssima. Disse que Ronaldo estava internado em uma clínica com depressão nervosa, que ela estava ao lado dele e, indignada, me responsabilizou pelos boatos absurdos de que estaríamos tendo um caso e me passou uma descompostura pelo atrevimento, reiterando de todas as formas e com todas as letras que não havia nem nunca houve nada entre nós. E desligou. Perplexo, imaginei que poderia ser uma cena teatral, recitada sob pressão. Mas não: era verdade, era a sua escolha. Desesperado, tentei de
todas as formas falar com ela, mandei recados por Rogério, pela mãe dela, dona Ercy, por amigos comuns, cheguei até a devolver por Rogério todas as muitas cartas que ela tinha me escrito, numa patética manobra para tentar sensibilizar sua memória afetiva. Em vão. Duas
semanas depois, lendo e relendo as cópias xerox das cartas de Elis, fui para Londres sozinho e passei meu aniversário viajando de ácido com uma turma de doidões em Portobello Road. Desde Woodstock os jovens brasileiros passaram a ter um sonho obsessivo: seu próprio Woodstock, a fantasia de uma república independente de música e liberdade, a céu aberto, sem polícia e sem ladrões, sem pais e professores, em total harmonia e comunhão, todo mundo doidão. 

No Brasil da ditadura era impensável. Mas por isso mesmo era um de nossos sonhos mais queridos e constantes. Para a paranóia militar, juntar algumas dezenas de pessoas, principalmente jovens, em qualquer lugar e a qualquer pretexto era uma abertura à subversão/oportunidade de contestação/tentativa de conspiração. Para ! realizar um evento musical ao ar livre, era indispensável cumprir incontáveis exigências burocráticas, tirar licenças e alvarás do Estado, do Município, da Polícia, dos Bombeiros e da Censura Federal, que só autorizava o espetáculo depois de checar uma relação individual de todos os músicos
que se apresentariam, com todos os seus documentos, todas as letras completas de todas as músicas que seriam apresentadas com as respectivas liberações. No final de 1971, depois de enfrentar a via-crucis burocrática junto com Carlos Alberto Sion, fizemos o I Concerto Pirata no Estádio de Remo da Lagoa, reunindo 800 jovens numa noite de sábado para ouvir e dançar rock com bandas novas. Foi lindo: o palco iluminado parecia uma nave espacial brilhando na noite carioca, com a deslumbrante paisagem da Lagoa ao fundo. Esperávamos muito mais gente, muita gente não pagou entrada, o aluguel dos equipamentos de som e iluminação era caríssimo, não tínhamos qualquer patrocínio e comemoramos a vitória contabilizando um baita prejuízo. 


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