sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O CANTO DE LUIZ GONZAGA CONTRA A TORTURA

Por Abílio Neto





"Salmo dos Aflitos" (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

Menino de procissão
Cordeiro de um rebanho sem fim
Me lembro das graças que o povo
Pedia pros céus, era assim:

As virgens todas proclamam
Tua graça e formosura
Sois a dileta do povo
E a protetora das almas
Da povoação de Nossa Senhora da Serra da Raiz

Abrandai os corações dos ignorantes
Abrandai, abrandai, abrandai! (bis)

Crescido agora é que eu sei
Que há outros pra ouvir meu latim
Em nome dos céus, eu reclamo
As graças que devem pra mim:

As graças que eu reclamo
Em nome dos irmãos aflitos
São já conhecidas de todos
E sem elas o grande rebanho vai morrendo
Ou fingindo viver como Deus é servido

Abrandai o coração de todos os poderosos
Abrandai, abrandai, abrandai!" (bis)

Algumas pessoas, incluindo-se até jornalistas, querem passar a falsa impressão de que em matéria de política Luiz Gonzaga sempre foi um ingênuo. Ledo engano. Gonzaga era um conservador no que se refere a essa arte menor. Ele tinha horror aos políticos denominados de esquerda. Havia servido nove anos no Exército brasileiro (1930 a 1939), participado das revoluções de 1930 e 1932 e aprendido a admirar os generais. Dutra foi um grande amigo seu. Inúmeras vezes ele foi chamado para abrilhantar como músico os saraus presidenciais. Até na recepção a Eva Perón o sertanejo puxou o seu fole de 120 baixos, tocando valsas, choros e logicamente tangos. O seu famoso prefixo musical, a música "Boiadeiro" era de dois ex-militares (Armando Cavalcante e Clécius Caldas) os quais Luiz conheceu na caserna. Trabalhou de graça pra Jânio Quadros e Carlos Lacerda em suas campanhas. Cantou para o marechal Castello Branco em Fortaleza. Acho que isso já basta para o bom entendedor.

Assim sendo, não foi nenhuma surpresa quando declarou seu apoio incondicional ao regime de exceção de 1964. Logo no início do governo Médici decepcionou meio mundo de gente que gostava das músicas de protesto que gravou: “Vozes da Seca”, “Ai, seu Generá”, “Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores”, “A Triste Partida”, “A Morte do Vaqueiro” e “O Andarilho", gravadas nas décadas de quarenta a sessenta. Entre os artistas decepcionados estavam Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré, sendo que este último mudou do vinho para água. Seu Luiz Gonzaga chegou ao cúmulo de dizer que “não havia tortura no Brasil”! O mais triste de todos com esse comportamento do artista era justamente o seu filho Gonzaguinha.

Para seu desespero, em contrapartida, no próprio governo Médici, Luiz foi chamado ao departamento de censura da Polícia Federal para ouvir que dali pra frente não poderia mais cantar três músicas nos seus shows: “Vozes da Seca”, “Paulo Afonso” e “Asa Branca”. Vejam até onde foram aqueles homens da tesoura: censurar a música “Asa Branca”! E se a Censura, quando revelada, mostrou que era um monstro sem cabeça, não adianta agora ficar perguntando o porquê. “Vozes da Seca”, sim, era música de protesto e “Paulo Afonso” causava inveja aos homens de verde-oliva.

Mas os casos de denúncias de tortura de inimigos do regime pela imprensa foram aumentando até culminar com o “suicídio” do jornalista Vladimir Herzog em outubro de 1975. Depois disso, em janeiro de 1976, sucedeu a morte do operário Manuel Fiel Filho também nas masmorras da ditadura em São Paulo. No fim daquele ano aconteceu a volta de Sivuca dos Estados Unidos, o qual trazia na bagagem, a sintomática “Nunca Mais Eu Vi Esperança” que Gonzaga gravou. Dos bate-papos de Gonzaga com a volta de Sivuca e ao reencontrar o advogado, compositor e músico Humberto Teixeira foi que surgiram uns versos estranhos que diziam: “abrandai o coração dos ignorantes/ abrandai, abrandai, abrandai”! Também pediam graças “em nome dos irmãos aflitos”. Mas afinal que irmãos eram esses? Ou então: “abrandai o coração de todos os poderosos/ abrandai, abrandai, abrandai”.

A quem aqueles versos foram destinados? Inexplicavelmente (?), aquela que seria a última música da parceria famosa (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira) recebeu o título de “Salmo dos Aflitos” ou “Abrandai”. Nunca pude deixar de entendê-la como um canto contra a tortura em um bendito sertanejo em ritmo de valsa e com uma letra tocante, que hoje está mais atual do que nunca em função da violência nossa de cada dia. Gonzaga não quis incluí-la no alegre “Chá Cutuba”, de 1977, para não ter mais problemas com a censura e aguardou apenas que a coisa abrandasse um pouco durante o governo Geisel.

O ano de 1977 foi turbulento. Em abril, Geisel fechou o Congresso Nacional com base no AI 5, ato político que Marco Maciel, admirado por Luiz Gonzaga, definiu como “medida profilática”. Com o chamado “Pacote de Abril” foi criada a deplorável figura do senador biônico. Naquele ano, a ultra-direita estava tão assanhada que o presidente Ernesto Geisel teve que exonerar o ministro do Exército, Sílvio Frota, em 12/10/1977. E seu Luiz não era besta de lançar a sua música de protesto num ano como aquele. Também porque lançava seus discos sempre antes do São João, a exemplo do Chá Cutuba, que chegou às lojas em abril de 1977. Foi uma das coisas boas daquele abril negro!

Finalmente, no seu disco de 1978, “Dengo Maior”, Luiz lançou “Salmo dos Aflitos”, mas aí muita gente ficou sem entendê-la, pensando que se tratava de mais uma música sobre o sofrimento provocado pela seca nordestina. Politicamente, aquela música já havia perdido quase toda a sua força.

Para muitos, a gravação da festejada “Caminhando” ou “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré, em 1968, foi apenas uma gentileza sua com ele que antes havia gravado a famosa “Asa Branca”. É bom lembrar que “Seu Luiz” tinha uma cabeça um pouco confusa: certa vez queria ser deputado federal, não pela Arena, que ele apoiava cegamente, mas pelo MDB. O Padre João Câncio, o criador da Missa do Vaqueiro, foi quem lhe retirou essa idéia.

Em 1981, finalmente, Gonzaga fez as pazes com Gonzaguinha de quem tinha se afastado, principalmente por razões ideológicas. Aliás, a aproximação se deu por ocasião da gravação do disco “Eu e Meu Pai”, de 1979, quando eles cantaram juntos o xote “Rio Brígida” e Luiz, com ou sem noção, resolveu homenagear quatro figuras da direita pernambucana, citando-as na gravação: Moura Cavalcanti, Marco Maciel, Nilo Coelho e Oswaldo Coelho, comprometendo a beleza da música e do disco, feito em homenagem ao seu pai Januário, falecido no ano anterior.

Li, para meu desgosto, em 2008, no jornal “O Globo”, que um neto do cantor, Sandro Luiz Gonzaga Marques, 35 anos, policial civil do Rio de Janeiro, foi executado por assaltantes, após descobrirem a carteira de policial do rapaz. Seu corpo foi encontrado em 19/09/08. Era filho único de Rosa Maria Gonzaga Marques, a Rosinha, filha adotiva de Luiz Gonzaga e dona Helena das Neves Cavalcanti Gonzaga. Ele vinha planejando se afastar das atividades na polícia para se dedicar exclusivamente a um projeto de produzir um filme sobre a vida do seu avô. Até o cineasta já tinha contratado, porém a violência não permitiu que seu sonho se transformasse em realidade!

Essa foi a notícia ruim de 2008 porque a notícia boa saiu do Recife: a prefeitura da cidade inaugurou no Pátio de São Pedro, bem no centro da cidade, o Memorial Luiz Gonzaga. Além de inúmeras fotografias, o visitante encontrará o seu acervo musical completo e livros publicados sobre o sanfoneiro. Poderá até escutar pela internet a música que desejar na medida em que as músicas vão sendo digitalizadas. Para tanto, a prefeitura do Recife comprou toda a coleção de discos de 78 rotações e também a de LPs do cantor, que pertenciam ao colecionador Mávio Holanda.

Publico, com muito prazer, para vocês, o link onde poderão ouvir o saudoso mestre de Exu cantando “abrandai o coração dos ignorantes/ abrandai, abrandai, abrandai”, que parece ter sido feita de encomenda para os assassinos do seu neto. Ou então, “abrandai o coração de todos os poderosos/ abrandai, abrandai, abrandai” que foi, certamente, um recado musical para os torturadores e seus cúmplices de altas patentes.

Salmo dos Aflitos é um bálsamo para os dias violentos e sofridos da nossa triste rotina e fez de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, juntamente com outras páginas sonoras que frutificaram dessa parceria genial, seres humanos que se eternizaram pela música. “Asa Branca” e “Salmo dos Aflitos” são bons exemplos da criatividade de ambos.

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