terça-feira, 19 de março de 2013

OS 150 ANOS DE ERNESTO NAZARETH

Músico que uniu o salão e a rua é homenageado com vasta programação que contempla sua obra nas faces erudita e popular.


Por Leonardo Lichote


RIO - Na virada do século XIX para o XX, algo fervia no Rio de Janeiro — as elites da capital federal emulando a elegância europeia, batuques ecoando pelas vielas ocupadas por escravos recém-libertos. Como pianista demonstrador da Casa Vieira Machado & Cia, na Rua do Ouvidor, ou como atração da sala de espera do Cinema Odeon, Ernesto Nazareth ouvia tudo. E, mais que isso, traduzia para seu instrumento o processo em curso — a cultura urbana que se formava, a tal fervura que deu as bases para a produção brasileira ao longo das décadas seguintes — misturando os dois universos: o salão e a rua, Chopin e os chorões, o negaceio rítmico e a complexidade técnica. Agora, quando são celebrados os 150 anos de seu nascimento (no dia 20 de março de 1863, no Morro do Pinto), Nazareth é homenageado em suas faces erudita e popular, lembrado como o que foi em ambos os terrenos: um fundador.

— Ele foi um dos grandes arquitetos da brasilidade, fundindo linguagem de danças de salão com elementos africanos das danças populares — explica o pianista André Mehmari, que preparou recital para abrir, no dia 19, as homenagens do Instituto Moreira Salles (IMS). — Parece simples, mas só um gênio pode fazer essa fusão com essa profundidade e de forma palatável, numa linguagem que chega muito fresca hoje.

Pianista fundamental na difusão da obra de Nazareth, com dois discos totalmente dedicados ao compositor de “Odeon” e “Brejeiro” nos anos 1960, Eudóxia de Barros ilumina um tanto dessa fusão de que Mehmari fala:

— Ele imitava instrumentos populares. Em “Apanhei-te cavaquinho” e “Ameno Resedá”, por exemplo, fazia a flauta na mão direita e o cavaquinho na esquerda. A música brasileira se divide em pré-Nazareth e pós-Nazareth. Somente com ele começou a ser verdadeiramente brasileira, com ritmos sincopados e brejeirice.

Sua abrangência pode ser medida pelas homenagens. A Orquestra Sinfônica Brasileira toca com Yamandu Costa o “Concerto Nazareth”, de Paulo Aragão, no Teatro Municipal, dia 23. O IMS abriga ainda o “Simpósio Ernesto Nazareth 150 anos” e mantém no ar o site www.ernestona zareth150anos.com.br, que inclui história e obra do artista e eventos relacionados à data.

Um dos participantes do simpósio do IMS — que nos dias 20 e 21 abordará a riqueza do compositor em quatro mesas temáticas —, o músico e historiador Cacá Machado lembra um diálogo que diz muito sobre a penetração da obra do pianista na música brasileira produzida depois dele e de seus “tangos brasileiros” (gênero que usou para classificar suas peças sincopadas):

— Nos anos 1980, havia um programa na TV Manchete chamado “A música segundo Tom Jobim”, dirigido por Nelson Pereira dos Santos. No primeiro episódio, Tom convidava Radamés Gnattali, e os dois comentavam como Nazareth foi importante para a música deles (o vídeo, no qual Radamés aparece tocando peças como “Odeon” e “Batuque”, pode ser visto no YouTube).

A influência de Nazareth, identificam os músicos e estudiosos de sua obra, está presente fundamentalmente em seu olhar original sobre as esferas popular e erudita:

— Não é uma influência rígida acadêmica, de uma escola — analisa o maestro Roberto Minczuk, regente da OSB. — A maior influência é do pensamento, de uma teoria, desse olhar único sobre a música popular urbana do Rio, dessa nossa cultura carioca e brasileira.

Representante celebrado do piano brasileiro contemporâneo, André Mehmari completa, tomando como exemplo sua própria música:

— Minha busca pela fusão de brasilidade com elementos da musica europeia vem de Nazareth, passa por músicos como Egberto Gismonti. É um pensamento musical. Minha procura hoje é como a que ele plantou.

Um pensamento que passou também por Villa-Lobos, como aponta Paulo Aragão:

— O compositor francês Darius Milhaud criticava os compositores brasileiros dizendo que os velhos eram influenciados por Wagner e os novos por Debussy. E que eles deviam prestar mais atenção em Nazareth. Dizia que havia um gesto em Nazareth, uma respiração, um “pequeno nada” muito particular. Ele escrevia, conhecia bastante bem o repertório clássico, mas tinha uma antena de ligação com a música popular, a rua. Frequentava as festas, foi um dos personagens retratados no livro do Animal (como era chamado Alexandre Gonçalves Pinto, que escreveu “Reminiscências dos chorões antigos”, com perfis dos personagens da música de rua carioca entre os séculos XIX e XX).


Frustração por ser popular



O “Concerto Nazareth” composto por Aragão vê a música do compositor a partir de três encontros do pianista. O primeiro é com Milhaud, mostrando sua influência no trabalho do francês. O segundo traz Villa-Lobos (“Eles chegaram a tocar juntos numa orquestra de salão na década de 1910”, conta Aragão, que lembra esse momento “silenciando” parte da OSB para que ela soe como uma pequena orquestra de salão). Por fim, o encontro de Nazareth com os chorões, a parte rítmica mais marcada.

O violonista Yamandu, que executará o “Concerto Nazareth” com a OSB, diz que o compositor está profundamente presente em sua música:

— A primeira música brasileira fora das tradições gaúchas que ouvi foi “Odeon”, tocada por meu pai. E no meu primeiro disco gravei uma interpretação de “Brejeiro” que foi muito bem recebida e deu muita sorte na minha trajetória. Ele foi o cara que ajudou a criar essa linguagem miscigenada, não sei se querendo ou não, na qual tocamos até hoje.

Com uma obra executada em salas de concerto do mundo todo, como nota Eudóxia, Nazareth chegou, por via indireta, ao lugar onde sempre quis estar.

— Ele queria ter sido não o Nazareth, mas um músico erudito. Morreu com essa frustração, como o Pestana de “Um homem célebre”, de Machado de Assis — diz Cacá Machado. — Mas acabou por imprimir um jeito de compor que teve reflexo forte na música erudita, como Villa-Lobos deixa claro a dedicar a ele seus choros.

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