segunda-feira, 7 de março de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




Quando se mudou para o Brooklyn, Jorge chegou num Karman-Ghia vermelho, que batizou como “Thor”, e com ele destruiu , parte dagaragem. Já estava elétrico, tocava guitarra o dia inteiro, sentado na janela, com as pernas balançando, criando músicas improvisadas sobre os mais diversos e banais acontecimentos do cotidiano. Não fumava nem bebia e tinha verdadeiro horror a drogas. Era de uma vitalidade animal. Mas depois da explosão inicial do sucesso, os discos de Jorge já não vendiam tanto, suas novas músicas soavam repetitivas e ele parecia estar numa fase de transição. De vez em quando, se apresentava em “O fino”, mas depois que participou dos primeiros programas “Jovem guarda”, foi vetado no musical comandado por Elis Regina e Jair Rodrigues.

Foi o primeiro tiro de uma guerra musical e mercadológica (e até mesmo política, para alguns mais inflamados) entre “Jovem guarda” e “O fino” — que era tudo o que a TV Record poderia querer como promoção, gerando polêmica, debates e paixões, num tempo em que música popular era discutida nas ruas de São Paulo como se fosse futebol. Além de ter se apresentado no programa do “inimigo”, Jorge agora tocava uma guitarra elétrica — uma afrontosa provocação para as brigadas da “autêntica” música brasileira, que seria acústica pela própria natureza, simbolizada pelo violão: a guitarra era um instrumento da dominação americana, do colonialismo e do imperialismo. Devia ser destruída.

Estimulada e amplificada pela TV Record, a briga entre a “música jovem” e a “música brasileira” — como muitos colocavam com involuntário humor, em tempos de radicalismo político e paixão nacionalista — ganhou os jornais, as rádios e as ruas e gerou conflitos entre fãs-clubes e torcidas, encheu auditórios, estourou as audiências de televisão, vendeu discos como nunca. Pouco depois de se mudar para a casa do Brooklyn, Erasmo comprou o Rolls Royce do folclórico político populista Adhemar “Roubamas-faz” de Barros, um dos dois ou três que existiam no Brasil. Os carros ingleses, não os políticos populistas.

Em São Paulo, foi um escândalo ainda maior do que em Londres, quando John Lennon comprou um Rolls, símbolo da aristocracia, da tradição e da qualidade inglesas, e pintou-o com cores e desenhos psicodélicos. O de Erasmo continuou preto e foi pago com os direitos autorais de “O calhambeque” e “Quero que vá tudo pro inferno”, gravados por Roberto e mega-hits nacionais, os primeiros da jovem guarda. Ao mesmo tempo a Magaldi, Maia & Prosperi lançava no mercado três linhas de roupas, brinquedos e adereços: “Calhambeque”, de Roberto, “Tremendão”, de Erasmo, e “Ternurinha”, de Wanderléa, dentro de seu plano de comercialização da imagem dos novos ídolos: os fabricantes pagariam royalties à agência, que dividiria com os artistas. Em pouco tempo, o visual do pessoal da jovem guarda mudou completamente: os terninhos Beatles de quatro botões foram substituídos pelas calças boca-de-sino coloridas, pelos paletós de veludo, pelas camisas de babados, pelos chapéus; as garotas passaram a usar minissaias mínimas e calças Saint Tropez de cintura baixa que mostravam as barriguinhas, as mãos foram se enchendo de anéis, os cabelos crescendo. A jovem guarda emplacava um sucesso atrás do outro: “Festa de arromba”, de Roberto e Erasmo, é cantada e dançada no Brasil inteiro, celebrando as estrelas da jovem guarda: “Mas... vejam quem chegou de repente, Roberto Carlos com seu novo carrão...” A festa de arromba imaginada por Roberto e Erasmo não só era animadíssima como promovia nacionalmente os personagens do programa de televisão, da nova onda que estava tomando conta do país.

Na festa, todo mundo se divertia, mas ninguém comia ninguém: as jovens estrelas, Wanderléa, Martinha, Rosemary, eram todas virgens, marcadas de perto por pais, mães e irmãos. Festa mesmo era o vestiário dos músicos no auditório da TV Record, que era separado do camarim das cantoras por uma fina parede de madeira, onde um voyeur mais audacioso abriu um discreto buraquinho. Já às onze da manhã, antes de começar o ensaio, lugares na fila eram disputados a tapa. E não só nos programas “Jovem guarda”, mas em todos os musicais da Record, desde “O fino” ao “Bossaudade” de Elizeth Cardoso e Hebe Camargo, passando pelo “Show em Si... monal”, produzido por Carlos Imperial. Por causa desse programa, Roberto e Erasmo brigaram feio, pela primeira vez. Para homenagear Erasmo e dar-lhe um troféu como “Destaque de compositor”, a produção preparou um potpourri com os grandes sucessos da dupla — “Não quero ver você triste” (que foi gravado até pela bossa-novista histórica Sylvinha Telles), “Calhambeque”, “Parei na contramão” e “Festa de arromba” — para ser cantado por Erasmo e Simonal. Mas o nome de Roberto não foi falado em nenhum momento. Uma hora depois, no Rio, ele já sabia de tudo e estava furioso: telefonou esculhambando Erasmo pela omissão. E Simonal e Imperial pela pilantragem. Parecia que ele se metia nas músicas como um intruso, como um “bicão”.

Roberto se sentiu traído: afinal, a combinação era que, além do que fizessem em parceria, tudo que cada um fizesse sozinho seria sempre assinado e dividido pelos dois, como Lennon e MacCartney. O pau comeu feio entre os Carlos. Ficaram seis meses sem se falar, fazendo juntos o programa de televisão todos os domingos, se comunicando através do diretor edizendo estritamente os textos escritos pela produção. E se esforçando para manter publicamente o calor de um companheirismo, uma alegria e um espírito de turma que eram uma das forças e graças da “Jovem guarda”. No palco, todo mundo continuou se abraçando e se festejando, Roberto continuou anunciando fraternalmente a entrada em cena “do meu amigo... Eraaaaaaasmo Caaaaarlos!” e nem na platéia e nem em casa ninguém percebia nada: a jovem guarda estava cada vez melhor e mais unida. A jovem guarda estava pegando fogo. “É uma brasa, mora!” era o bordão de Roberto que se tornou a mais popular gíria nacional, “Quero que vá tudo pro inferno” se transformou no grande hit, o maior de todos, no sucesso incandescente que levou Roberto ao primeiro lugar absoluto nas paradas. Onde ficou meses. 

“Só quero que você me aqueça neste inverno, e que tudo mais vá pro inferno!” Quase todos os programas “Jovem guarda” terminavam com todo mundo no palco cantando a música, que se tornou uma espécie de hino do iê-iê-iê nacional. O Brasil inteiro, dos vovôs aos netinhos e da classe A à Z, cantou “Quero que vá tudo pro inferno”, e mesmo entre as novas
gerações mais sofisticadas e politizadas, que torciam o nariz para a jovem guarda simplória e alienada, Roberto começou a ganhar admiradores. E principalmente admiradoras.

Nas mesas dos bares de Ipanema, a princípio timidamente mas depois com entusiasmo, simpatizantes ofereciam teses, interpretações e leituras políticas para a música e seu sucesso: o desejo reprimido do povo de mandar os militares para o inferno, uma mensagem cifrada de rebeldia, metaforizada para escapar da censura. Ou a interpretação sexual de “me aqueça neste inverno”, como slogan libertário. Tudo pretexto para poder gostar de Roberto Carlos sem parecer simplório nem alienado. Mesmo entre os músicos, onde ainda era considerado vulgar e superficial, Roberto começava a ser reconhecido pela doçura de seu timbre, por sua afinação, pela precisão do seu fraseado e pelo inegável charme com que cantava. Afinal, ele tinha começado imitando João Gilberto, argumentavam jovens sofisticados, já atraídos irresistivelmente pelo fascínio de Roberto Carlos. Como o Brasil inteiro. Na última carta de Erasmo que recebeu na prisão em Daytona, Tim ficou sabendo que eles tinham um programa de televisão só deles, mas não levou muita fé. Assim que chegou ao Rio, viu que era verdade, procurou Erasmo e Roberto e foi a São Paulo fazer a “Jovem guarda”.

Anunciado com grande entusiasmo por Roberto, entrou em cena um mulato gordo, de cabelo black power, casaco de couro negro e cara de bandido saído da cadeia, e as meninas se assustaram mas aplaudiram, porque aplaudiam tudo e todos, mas sem o menor entusiasmo. Elas gostavam mesmo era dos galãs Jerry Adriani, Wanderley Cardoso, Ronnie Von, Erasmo e Roberto. Depois foi pior ainda: Tim cantou duas músicas em inglês, funk, soul, James Brown, brabeira. A plateia não entendeu nada. E Tim saiu reclamando do som.



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