segunda-feira, 12 de setembro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*




Tímido e tenso, gorducho e sorridente, Newton Duarte se transformava diante do microfone: sua voz metálica metralhava palavras em ritmo vertiginoso e espantosa precisão, criava gírias e novas expressões, apresentava aos jovens cariocas as últimas novidades do rock internacional, em discos contrabandeados por comissários amigos. Coadjuvado por “Doktor Sylvana”, seu técnico de som e criador de sensacionais efeitos sonoros, Big Boy explodia os rádios nas tardescariocas, era o maior sucesso da cidade. Embora tecnicamente caretana vida real, Big Boy falava tantas loucuras e num ritmo tão alucinante que era ouvido como o doidão de todos os doidões. No início ele ainda viveu uma vida dupla: de manhã era o sisudo e tímido professor Newton, que ensinava Geografia no Colégio de Aplicação da Lagoa, e à tarde se transformava no enlouquecido Big Boy no microfone da Rádio Mundial. Uma manhã, o professor Newton entrou na sala, de paletó e gravata, e, como sempre, com uma pesadíssima pasta, que jamais abria. Entre os alunos crescia a curiosidade por seu volumoso conteúdo, e alguns deles, ouvintes e fãs de Big Boy, já começava  a notar estranhas semelhanças entre a voz e o jeito rápido de falar, o ritmo, a dicção perfeita do mestre chatíssimo e do querido DJ.

Até que naquela manhã, no meio de uma dissertação tediosa sobre a Bacia Amazônica, o professor Newton parou de repente e começou a falar como Big Boy, com seu grito de guerra “Hello, crazy people!”, e seguiu falando como Big Boy, no seu ritmo, com as suas gírias, os alunos deliravam, jogavam livros e cadernos para o alto, gritavam “É Big Boy! É Big Boy! É Big Boy!”. Arrancando a gravata e tirando o paletó, o professor Newton abriu sua famosa pasta e começou a jogar discos, discos e mais discos para os alunos, “Discos para todos!”, gritava e gargalhava histericamente, falando vertiginosamente uma torrente de loucuras e proclamando que sua verdadeira identidade era Big Boy e que o professor Newton estava morto. A porta se abriu e ele foi interrompido pelo diretor furioso, pediu demissão no ato e saiu ovacionado pelos alunos. Big Boy teve breve e fulgurante carreira, se transformou em uma legenda do rádio, fez inúmeros amigos, influenciou milhares de pessoas e morreu com 33 anos, sozinho em um quarto de hotel em São Paulo, sufocado por um ataque de asma. “Fala, amizade!” era a saudação obrigatória dos hippies brasileiros. Era preciso muita vontade e alguma coragem para ser hippie numa ditadura militar boçal e truculenta. Visados pela polícia, muitos foram confundidos com militantes da resistência armada, presos e torturados por engano.

Duro também era aguentar a concorrência dos hippies argentinos, também fugindo da repressão deles, que chegavam aos milhares. Na praia, nas ruas de Ipanema, na porta de qualquer show eles estavam lá, numa boa, pedindo: “Tiene um crucero aí, amissádgi? Un cigarillo?” O verão de 1972 foi o apogeu do desbunde brasileiro. Massacrados pela repressão política e pelo autoritarismo violento, os jovens, muitos deles sem apetite para a luta armada, optaram pelo rompimento total com a sociedade. Viraram hippies pacifistas radicais e caíram de boca no ácido e na maconha, viviam em comunidades, faziam música e artesanato, comiam macrobiótica e tentavam abolir o dinheiro, o casamento, a família, o Congresso, as forças armadas, a polícia e os bandidos, tudo de uma vez só e numa boa. Muitos encontraram a felicidade, ainda que fugaz, vivendo com amigos numa “nova família”, convivendo e se divertindo como irmãos.

Os mais famosos e talentosos hippies do Rio de Janeiro, os mais radicais e divertidos, eram os Novos Baianos. Conheci Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão no Rio, um ano antes, quando eles me fizeram uma visita para me mostrar ao vivo as suas músicas, na esperança de um contrato com a Philips, onde eu era produtor. As músicas eram sensacionais, eles cantavam e tocavam com grande alegria, e havia ainda Baby Consuelo, uma divertidíssima crooner roqueira, e dois soberbos instrumentistas ainda adolescentes, os irmãos Pepeu e Jorginho Gomes, guitarrista e baterista dos Leifs — que tinham acompanhado Gil e Caetano no i show de despedida do Brasil. Fiquei doido com o som deles, com as letras muito loucas de Galvão, com o bom humor e a rebeldia, com o suingue e a malandragem, levei uma fita para a reunião da Philips, todo mundo gostou, mas quando os chamei para assinar um contrato, eles já tinham assinado com João Araújo, diretor da RGE, onde fizeram seu primeiro disco.
 
“Ferro na boneca” era o carro-chefe do disco, baseado na expressão popularizada pelo radialista futebolístico baiano França Teixeira. Um rock animado, malandro, tropical. Mas não eratropicalista, era já uma outra coisa: “Não, não é uma estrada, é uma viagem, tão, tão viva quanto a morte, não tem sul nem norte, nem passagem...” “Ferro na boneca” foi um sucesso no meio musical, entre os pirados, friques (como os baianos chamavam os “freaks”) e doidões do Rio, São Paulo e Salvador, mas não aconteceu comercialmente, vendeu pouco e a gravadora não quis fazer o segundo. E como seu protetor João Araújo tinha saído da RGE para ir para a recém-fundada Som Livre, ficaram ao relento. Levei-os para a Philips e André Midani aceitou experimentar, mas pediu que antes do Lp fizéssemos um compacto duplo, com quatro faixas: Os Novos Baianos no final do juízo. Um desastre completo. Embora as músicas fossem boas (especialmente “Dê um rolé”) e fossem ótimos os músicos, eles estavam ainda mais roqueiros e pesados do que no primeiro disco, tocando mais alto e mais distorcido, e foi impossível gravar o que eles tocavam com fidelidade. No pequeno estúdio de quatro canais da Philips, em cima do Cineac Trianon, eles tocaram como se estivessem em Londres, e como no Brasil ainda não se sabia gravar rock, especialmente mais pesado, a gravação ficou péssima e a mixagem uma porcaria, os sons empastelados, uma lambança sonora produzida por minha incompetência técnica, só superada pela do engenheiro de som. Mas as gravações foram divertidíssimas, quilos de maconha foram consumidos, houve sempre grande alegria e ótima música. Só que o que a gente ouvia não era o que ficava gravado. O disco fracassou completamente e durante algum tempo eles ficaram chateados comigo. Galvão, paranóico e conspiratório, dizia que eu tinha “sabotado” o disco, o que era um absurdo: eu podia ser, ou estar, meio louco, mas não era burro. Depois eles compreenderam que foi só incompetência e inexperiência minha, somadas à ansiedade e ignorância técnica deles. Deu no que deu. O Lp nunca aconteceu e eles ficaram novamente no desvio.

Os Novos Baianos moravam em comunidade num amplo apartamento em Botafogo, com suas guitarras, baterias, almas e bagagens. Nos cômodos eles armaram tendas de panos coloridos e cada um tinha a sua “casa”, cuidava dela, recebia seus amigos, namorava, ficava sozinho. Elétricos, lisérgicos, canábicos e talentosíssimos, os Novos Baianos faziam música dia e noite, tinham incontáveis amigos e a geladeira sempre cheia — e sempre vazia. Uma noite eles receberam uma visita surpreendente, mas esperadíssima. Mas antes levaram um susto: o baixista Dadi, de 19 anos, foi abrir a porta e, quando viu aquele senhor de paletó e óculos, muito sério, virou para dentro e avisou: “Ih, pessoal, sujou: acho que é cana.” Mas não era: João Gilberto foi recebido como um messias no apartamento-comunidade de Botafogo. Conterrâneo de Galvão, de Juazeiro, João tinha finalmente aceitado o insistente convite. Naquela noite, de surpresa, ele foi. E se esbaldou.

Quem achava que conhecia João, seu minimalismo e sua sutileza, achou que era mentira ou no mínimo absolutamente improvável que ele tivesse se encontrado, ainda que brevemente, com um bando de roqueiros elétricos e barulhentos: era tudo o que João abominava, pensavam eles. Que os Novos Baianos estivessem interessados em conhecer João Gilberto é compreensível: Galvão era seu fã, ou melhor, devoto, desde Juazeiro, e tinha estado no apartamento de João no Leblon, em êxtase místico. Paulinho Boca de Cantor, Baby Consuelo e Moraes Moreira estavam loucos para conhecê-lo. Mas uma das grandes perguntas não respondidas da música brasileira — e que mudou seus rumos — continua sendo: O que João Gilberto foi fazer no apartamento dos Novos Baianos? E, no entanto, ele estava lá, cantando alegremente, quem quem, seduzindo os roqueiros rebeldes e elétricos com seu charme sertanejo e sua disciplina libertária, com sua arte rigorosa e acústica, feita de música e de silêncios. O culto a Jimi Hendrix sofreu forte abalo na comunidade de Botafogo naquela noite. Algumas visitas depois, com todos em volta de João e seu violão, ouvindo fascinados uma história viva da música brasileira, bandolins e cavaquinhos começaram a dividir espaço com as guitarras, discos de Jacob do Bandolim e Waldyr Azevedo dividiam o toca-discos com os de Jimi Hendrix e Janis Joplin. Era uma revolução dentro da revolução, uma síntese pra lá de dialética.

Quando se mudaram para um sonhado sítio (com campo de futebol) em Jacarepaguá, graças a um contrato com a Som Livre, para onde os levou o amigo João Araújo, eles estavam prontos para desenvolver seu novo som. A música dos Novos Baianos integrava os ritmos e as sonoridades acústicas nacionais com as estridências e distorções das guitarras planetárias — um heavy-samba que misturava os mestres brasileiros com os sons internacionais e resultou num dos melhores discos da história do pop nacional: Acabou chorare. Clássicos instantâneos como “Preta pretinha” e “Besta é tu” eram obrigatórios em qualquer roda em que houvesse um violão. Os desbundados, os doidões pós-tropicalistas, viraram estrelas, se tornaram presença constante nos happenings televisivos do Chacrinha, identificados com a atmosfera anárquica e carnavalesca do “Velho Palhaço”, venderam milhares de discos, mostraram a todo o Brasil sua música e seu estilo de vida. Mais que uma banda, uma família ou uma tribo, eles eram os “Novos Baianos Futebol Clube”, virando o jogo da MPB e dando uma goleada musical, um show de bola. Apesar do fracasso retumbante do festival do ano anterior, quando os principais compositores retiraram suas músicas, a TV Globo insistiu e, junto com as gravadoras, abriu o festival de 1972 para revelar novos talentos. E revelou um, grande. O Maracanãzinho delirou com aquele magrelo topetudo que tocava sua guitarra e dançava como Elvis Presley e depois xaxava como Luiz Gonzaga e na sua música fazia uma crítica debochada e inteligente do confronto musical entre o rock e a música brasileira.



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