segunda-feira, 10 de outubro de 2016

NOITES TROPICAIS - SOLOS, IMPROVISOS E MEMÓRIAS MUSICAIS (NELSON MOTTA)*



Lançada em compacto, a música não aconteceu no Rio, mas foi muito bem recebida em São Paulo. Por sugestão de Paulo, Raul, de terno, gravata e violão, convocou a imprensa e provocou grande tumulto na Avenida Rio Branco, juntando uma multidão à sua volta, cantando e promovendo ao vivo, direto ao consumidor, a sua nova música. Apareceu até no “Jornal nacional”. A música era irresistível: estourou no país inteiro. Logo depois, Paulo e Raul enfrentaram pela primeira vez problemas com a Censura, que exigiu a modificação de dois versos de “Como vovó já dizia”: “quem não tem papel dá recado pelo muro/ quem não tem presente se conforma com o futuro” foi mudado  para “quem não tem filé come pão e osso duro/ quem não tem visão bate a cara contra o muro”. Mas liberou o debochado refrão, que pulsava hipnoticamente e levou a música ao sucesso popular: “Quem não tem colírio usa óculos escuros...” Empapuçados de maconha e ácido, Paulo e Raul se tornavam cada vez mais audaciosos.

Imaginavam, ingenuamente, que suas músicas anárquicas e sua contraditória tentativa de “organização” da “Sociedade Alternativa” não eram levadas a sério pelo sistema repressivo, que eram vistas como coisa de “roqueiros americanizados”e não de “subversão política”. Mas
foram presos, apertados em longos depoimentos e finalmente libertados, assustadíssimos. Mudaram o jogo e abriram o leque para o misticismo oriental. Feita em dez minutos, “Gîtã” foi um dos maiores sucessos de 1974, gravada por Raul e depois por uma poderosa Maria Bethânia, num dos maiores sucessos populares de sua carreira. Assim, os brasileiros conheceram uma versão tropicalizada das milhares de páginas em sânscrito do Bhaghawad-Gitâ, condensadas por Paulo Coelho e Raul Seixas num sucesso popular. Parecia mágica. Talvez fosse algo além do talento e oportunismo da dupla, que andava enfiada até o pescoço no mundo da magia e do ocultismo, eram estudiosos e seguidores do mago e satanista inglês AliesterCrowley, de quem me falavam com grande entusiasmo e devoção: o homem era o “cão”.

Também gostavam muito de Thomas De Quincey e suas Memórias de um comedor de ópio, gostavam de tudo que era proibido, pecaminoso, secreto e misterioso. E diziam que detestavam política. Raul, além de magro e abusado, fumava, bebia e cheirava cada vez mais, embora a cocaína apenas começasse a aparecer no meio musical carioca, basicamente alcoólico, canábico e lisérgico. Os hippies maconheiros e viajandões, místicos e pacifistas, eram radicalmente contra o pó: era coisa “dele”, do “cão”. Tim Maia detestava. Envolvido com a seita “Universo em desencanto”, do pai-desanto “Seu Manuel” de Belford Roxo, ele tentava converter os amigos ao naturalismo. Uma tarde, no apartamento de Raul na Rua Figueiredo Magalhães, testemunhei uma acalorada discussão entre o gordo e o magro sobre as grandezas e misérias da cocaína e da maconha. Raul falava mal da maconha, dizendo que ela deixa as pessoas prostradas e ; sem vontade de nada, que a cocaína dava força e velocidade. Tim contradizia dizendo que a planta era santa, dava paz e inspiração. A coisa foi esquentando e quando Raul começou a debochar do “pacifismo  naturalista” de Tim, os ânimos se exaltaram e Tim encerrou a discussão advertindo o machista Raul para tomar cuidado porque a cocaína, além de impotência, provoca no usuário uma irresistível vontade de ser sodomizado. Ou, em suas palavras imortais, “afrouxa o brioco”. Discussão encerrada. Tim acendeu mais um e Raul esticou mais uma e quase fizeram uma música juntos.
 
Depois da prisão, assustados, Paulo e Raul viajaram para os Estados Unidos no início de 1974. Raul pela primeira vez, Paulo já tinha feito, um ano antes, de mochila nas costas e de carona, uma road trip de Nova York à Califórnia. Com Raul pagando tudo, os dois parceiros e respectivas mulheres desembarcaram em Los Angeles para a primeira etapa da viagem, exigência do satânico Raulzito: a Disneylândia. No desembarque, um pequeno suspense. Sem saber da fartura californiana e correndo graves riscos, Raul tinha levado um cinto recheado de maconha, convenientemente envolvida em panos encharcados de perfume. Passou incólume pelos cachorros e pela alfândega mas, quando chegou ao hotel, se decepcionou: a preciosa carga estava inutilizada pelo perfume. Em Los Angeles, Raul ficou maravilhado com as “head shops”, lojinhas hippies que vendiam tudo que servia para usar (e para esconder) maconha e cocaína. Uma imensa variedade de papéis para enrolar (em vários sabores), cachimbos, narguilês, vidros, canudos, trituradores, pilões, filtros, vaporizadores, sprays desodorizantes com vários aromas, embalagens com fundos falsos, toda uma parafernália de artigos para drogados e farta literatura sobre maconha, ácido e cocaína.

Nas “head shops” só não se vendiam os próprios. Da Disneylandia, doidões, eles foram para New Orleans e de lá para Memphis, em peregrinação ao santuário de Elvis Presley, Graceland. Em Nova York, por dias cercaram o Edifício Dakota, no Central Park, onde moravam John Lennon e Yoko Ono, em busca de um encontro. Em vão: nunca foram recebidos, mas na volta ao Brasil deram longas e detalhadas entrevistas sobre as idéias que trocaram com o famoso casal. Em seguida, Raul lançou o Lp Novo Aeon, completamente ideológico, com músicas como “A maçã”, que pregava a liberdade sexual e o casamento aberto, “Rock do diabo” (“enquanto Freud explica as coisas o diabo fica dando o toque/ O diabo é o pai do rock”) e a bela balada “Tente outra vez”, uma das melhores da dupla. Sucesso relativo mas muito abaixo do padrão de Raul e nenhum hit popular. Entupidos de cocaína e cada vez mais paranóicos, no fim do ano Paulo e Raul foram outra vez para os Estados Unidos, de novo bancados por Raul, mas dessa vez com o objetivo de ficar morando e trabalhando. Fizeram letras em inglês para as músicas, iam procurar empresários, produtores e gravadoras, começar tudo de novo nos Estados Unidos. Não procuraram ninguém. Paulo ficou em Nova York e Raul em Atlanta, com a família de Gloria, e dois meses depois voltaram ao Brasil de rabo entre as pernas. Brigaram, se separaram, e Paulo começou a fazer letras para Rita Lee.

No verão de 1975, com sorte, determinação e patrocínio da Souza Cruz, produzi no estádio do Botafogo, na Rua General Severiano, o primeiro Hollywood Rock, finalmente o sonhado festival ao ar livre. Em quatro sábados, reunimos Rita Lee & o Tutti-Frutti, em um dos seus primeiros shows solo, Os Mutantes (com Sérgio, Arnaldo, Liminha e Dinho), os novos cariocas Veludo, Vímana e O Peso, os “antigos” Erasmo Carlos e Celly Campello, que fez uma volta triunfal ao lado de seu irmão Tony, na noite que foi encerrada triunfalmente por Raul Seixas. Antes desse granfinale, muita água rolou sobre o palco e o gramado. No primeiro sábado, com Rita Lee, o tempo estava bom, mas o som estava horrível e o show não foi grande coisa. Pelo menos não choveu, ninguém foi preso, milhares de jovens se juntaram ao ar livre para um concerto de rock. Isso não existia no Brasil, só nos nossos mais ardentes sonhos. Como naquela noite quente e (quase) vitoriosa. No sábado seguinte, muito mais gente foi ver Os Mutantes, o Veludo e o Vímana, o som estava muito melhor, o público estava adorando, mas caiu um temporal que acabou com tudo. Público e artistas debandaram, técnicos tentavam proteger equipamentos, luzes estouravam e finalmente a cobertura do palco desabou diante dos nossos olhos.

Com o palco reconstruído e um público não muito grande mas muito animado, roqueiro, Erasmo Carlos, Celly Campello e Raul Seixas protagonizaram uma noite histórica para o rock brasileiro. Milhares de jovens gritaram com ele, de punhos cerrados, “Viva a Sociedade Alternativa!” e ouviram aos gritos um inflamado e subversivo discurso de Raul, tão inflamado e subversivo que, felizmente, foi registrado no filme Ritmo alucinante, senão pareceria inverossímil no clima repressivo em que se vivia. Durante dez minutos, Raul falou
barbaridades políticas, sexuais e religiosas, levou a garotada ao delírio, realizou nosso sonho roqueiro no campinho da Rua General Severiano. No fim do ano, com Marília grávida, nos mudamos para uma casa no alto do Joá, numa montanha sobre o mar, com acesso difícil e sem nada por perto. Para comprar um jornal, era preciso ir de carro à Barra da Tijuca, então um bairro incipiente, com ruas de terra e construções baixas e esparsas.

Uma das primeiras grandes construções da Barra foi o complexo com os estúdios e escritórios da Philips de André Midani — agora transformada em Polygram. Marília queria fazer um musical, queria cantar e dançar. A pedido dela, continuando a parceria musical com Guto Graça Mello, iniciada no “Viva Marília”, começamos a fazer as canções do musical que ela queria estrear logo depois do nascimento do bebê. “Feiticeira” era uma colagem de textos esotéricos de Carlos Castaneda, com outros de Júlio Cortázar e de Jorge Luís Borges, uma mistura meio new age do realismo mágico latino-americano com a moderna música brasileira, feitiçaria ultralight, mística e filosófica, gestada ao mesmo tempo que uma filha esperadíssima, a ser chamada de Esperança. Quando Esperança nasceu, em março de 1975, o musical estava pronto, com 14 canções, não só minhas e de Guto, mas dos novos Alceu Valença, Walter Franco e Eduardo Dusek e dos “malditos” Jorge Mautner e Jards Macalé. Chamamos Fauzi Arap para dirigir, Marcos Flaksman para a cenografia e Guto montou a banda de apoio com o guitarrista de jazz Hélio Delmiro e quatro músicos de um jovem e talentoso grupo de rock progressivo que também nos alugaria o equipamento de som. Luiz Paulo Simas, Fernando Gama, o inglês Ritchie e João Luiz, o “Lobão”, que tinha 16 anos, eram o pianista, baixista, flautista e baterista do Vímana (que significava “a carruagem de fogo dos deuses”, em sânscrito), que tinha participado do Hollywood Rock. O outro integrante do grupo, o guitarrista Lulu Santos, com sua jaqueta estampada de onça e seus cabelos imensos e cacheados, ficava de fora, pilotando o som. Mas Lulu queria tocar de qualquer maneira e quando Helinho teve que viajar depois do primeiro mês, pediu a mim e a Guto para tocar, implorou, exigiu, disse que já sabia todas as músicas de cor e que tocaria até de graça. E acabou tocando, ganhando. Com grande talento e enorme alegria, ele participou de um belo e imenso fracasso.

Jamais nos passou pela cabeça que “Feiticeira” não fosse ser um sucesso. Afinal, imaginávamos, tínhamos produzido aquilo tudo, aquelas músicas, aqueles textos, para compartilhar a alegria e felicidade que tinha sido fazer o musical, as descobertas de uma viagem mística e delicada, uma mágica teatral para adultos, solada por uma performer que além de cantar, dançar e representar em altíssimo nível, ainda era uma artista popularíssima, querida do povo. Não podia dar errado. Mas deu. Não artisticamente, porque o espetáculo era um musical diferente, refinado, de alta qualidade, assim como a performance de Marília, mas comercialmente foi um desastre. Pouca gente estava interessada em viagens místicas e mágicas, em sutilezas e delicadezas. No final de 1975 havia medo e raiva em toda parte, a repressão aumentava em intensidade e violência, os órgãos de segurança agiam autonomamente, fora de qualquer controle, nenhum poder era maior do que o da “comunidade de informações”, nunca se torturou tanto e se perseguiu tantos e a liberdade de expressão foi tão reprimida. Fora do teatro e longe da casa do Joá, na vida real, a coisa estava feia: ninguém aguentava mais tanta paranóia e violência, tantos filmes e livros e músicas que não se podiam conhecer, tanta coisa que não se podia fazer nem dizer, que se tinha medo até de pensar. “Feiticeira” era o oposto de tudo isto. Não tinha política, nem sexo, nem deboches, nem desafios.

Era leve e ligeira, delicada e esperançosa, familiar e espiritual. Mas apesar dos aplausos entusiasmados e boas críticas, cada dia foi ficando mais difícil encher os 700 lugares do Teatro Casa Grande, com públicos cada vez menores, foi penoso para Marília trabalhar às vezes para menos de cem pessoas. Em poucas semanas, o prejuízo era imenso, a montagem e a folha de pagamento eram caríssimas e quanto mais ficássemos em cartaz maior seria o prejuízo. Como produtores, Marília e eu estávamos pagando para trabalhar, usando o que ganhávamos na TV Globo para pagar o teatro e a manutenção do espetáculo, estávamos perplexos e assustados: nunca tínhamos imaginado que isto pudesse acontecer. A esperança era São Paulo, num teatro menor, com boa promoção. Outro problema sério: o pai de Lobão, o baterista, não consentia de nenhuma maneira que seu filho menor de idade fosse com a gente para São Paulo. E sem autorização paterna a Censura não liberava o show. Lobão era enorme, mas só tinha 16 anos, tocava violão clássico e bateria, era um músico talentosíssimo e um garoto tão doce e inteligente que não hesitei em assinar um documento em cartório me
responsabilizando totalmente por sua integridade física e moral e por todos os seus atos. Nos anos seguintes, às gargalhadas em noites de loucura, Lobão se divertiria me ameaçando com o temerário documento.

Mas São Paulo foi pior ainda. Foram raras as noites em que os 300 lugares do Teatro da Aliança Francesa estavam ocupados. São Paulo estava em pé de guerra, a repressão política tinha atingido seu nível mais violento, com a morte do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado no DOICODI. Fui ao culto ecumênico de Herzog na Catedral da Sé, vi os rostos
sombrios de tantos amigos, senti aquela dor e revolta, aquele horror, um clima pesadíssimo.
Em São Paulo, exaltada e politizada, ameaçada, ninguém queria saber do que estávamos mostrando: estávamos em guerra, era o que eu sentia todas as noites, jogando fliperama sozinho durante os espetáculos, para não ver o sacrifício que Marília e os músicos faziam se apresentando para plateias cada vez menores. Humilhado e endividado, voltei para o Rio, hipotecamos a casa do Joá, pagamos as dívidas e passamos a trabalhar cada vez mais, cada um de seu lado. O desastre de “Feiticeira” provocou fortes abalos em casa, foi o contrário da felicidade da gestação e nascimento de Esperança. E do musical: muitas vezes me senti culpado por ter colaborado para que uma grande artista entrasse numa “fria”, num espetáculo errado, pretensioso, intelectualóide, irresponsável e totalmente fora de sintonia com o momento que o país vivia. Claro: Marília, como em toda a sua carreira, fez o que quis e como quis, com talento e competência. Mesmo com o ego e as finanças abalados, ela seguia como uma grande atriz, mas minha carreira teatral estava encerrada, minha conta bancária
abaixo de zero e meu ego no pé. O casamento, desequilibrado, atravessava forte turbulência. Em São Paulo, para minha surpresa e desconforto, Marília quis ver o show de Elis Regina, “Falso brilhante”, o maior sucesso do ano, eleito o melhor por toda a crítica. Fiquei nervoso,
por todos os motivos: como deveria me comportar? Como veria Elis de novo depois de tanto tempo? Como ela nos veria? O que Marília acharia? Nervosíssimo, me sentei com Marília no teatro, ao lado de uma passarela por onde certamente Elis passaria. Como passou várias vezes, cantando e rindo para nós.



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