sexta-feira, 30 de junho de 2017

JOGOS DA NOITE: O SIMBOLISMO COM MELODIAS

Por José Teles



Tenho na alma dois moinhos/um é de água, outro é de vento/ambos juntos e vizinhos/estão sempre em movimento/movimento/ e giros, tantos e tantos/dão ao primeiro os meus prantos/e ao segundo os meus suspiros”, do poema Dois Moinhos, do esquecido poeta cearense José Albano (nascido em Fortaleza em 1882, e falecido em Paris, em 1923. Na verdade, Albano nem é “esquecido”, ele foi muito pouco conhecido, mesmo quando morou em Fortaleza, onde foi professor de latim, no Liceu do Ceará.

De difícil classificação, sua poesia foi enquadrada com nas escolas romântica parnasiana e simbolista. Manuel Bandeira, na Antologia dos Poetas Brasileiros,que não considerava que ele seguisse nenhuma linha poética em particular, classificou José Albano entre os simbolistas: “Pela espiritualidade de sua inspiração, pela musicalidade de sua forma, pela sensibilidade por assim dizer outonal de seus versos, é dentro do quadro simbolista que melhor cabe a sua singular figura”.

Surgido no final do século 19 na França (As Flores do Mal, de Baudelaire e geralmente considerado o marco do movimento), o simbolismo logo aportou num Brasil assumidamente francófilo, e influenciou uma nova geração de poetas, dos quais os mais conhecidos foram Alphonsus de Guimarães, Cruz e Souza e Álvaro Moreyra. Ao longo dos anos, de tantas vogas poéticas que o sucederam o simbolismo brasileiro restringe-se hoje ao ambiente acadêmico, e a leitores e esparsas reedições.

Inusitadamente, os simbolistas voltam a ser vitrine por obra e graça de músicos que atuam em São Paulo, que lançam, pela gravadora Circus, o álbum Jogos da Noite, no qual poemas de simbolistas foram musicados e interpretados por Filipe Massumi (violoncelo), Suzana Salles (voz), Sérgio Reze (bateria) e Pepê Mata Machado (violões), este também o autor das músicas (em parceria com Suzana Salles).

“Este trabalho começa pelas composições que criei a partir da Antologia dos Poetas Brasileiros: Fase Simbolista, organizada por Manuel Bandeira. Foi este livrinho sucinto que me introduziu a poeta até então por mim desconhecidos, como Eduardo Guimarães, da Costa e Silva e José Albano”, esclarece Pepê Mata Machado. O citado Os Moinhos, de José Albano, é revestida de uma sequência de tríades, com ênfase na bateria e violoncelo. A voz de Suzana Salles dá um colorido especial aos moinhos.

Embora um nome não muito familiar à maioria, Suzana Salles é uma das mais influentes vozes da música popular brasileira, desde que integrou a banda de Arrigo Barnabé, na fase de maior exposição da chamada Vanguarda Paulistana. Com Vânia Bastos criou um modelo original de canto, popular, mas no limiar do erudito.


No LIMIAR

No limiar do erudito é como se poderia pensar este Jogos da Noite, que se vale do lied, da modinha, como acontece em Saudades, do maranhense Casimiro de Abreu, quase sempre lembrado pela Lira dos Oito Anos, um dos mais populares poemas da literatura brasileira: “Oh! que saudades que tenho/Da aurora da minha vida/Da minha infância querida/Que os anos não trazem mais/Que amor, que sonhos, que flores/Naquelas tardes fagueiras/À sombra das bananeiras/Debaixo dos laranjais” (os dois últimos títulos inspirou, em 1968, um canção de Aristides Guimarães, um dos principais nomes do tropicalismo à pernambucana).

O romântico Casimiro de Abreu (que já havia morrido quando surgiu o simbolismo) entra no álbum com Saudades, que tem usos de modos menor e maior no mesmo tom, numa modinha, uma das mais belas canções, do disco, cujo intermezzo intrumental tem clima mezzo gótico, combinando com os poemas musicados no álbum: “Nestas horas de silêncio/de tristezas e de amor/eu gosto de ouvir ao longe/cheio de mágoas e de dor/o sino do campanário/que fala tão solitário/com esse som mortuário/que nos enche de pavor”.

O atormentado Cruz e Souza teve musicada sua Gargalhada 2, que ganha movimentos de música circense, a harmonia modulante emoldurando os versos: “Gargalhar, ri num riso de tormenta/como um palhaço/que desengonçado, nervo ri/um riso absurdo, inflado/de uma ironia e de uma dor violenta”.

Jogos da Noite, produção musical de André Magalhães, tem treze faixas, melodias sobre poemas de poetas obscuros, ou celebrados, como o Manuel Bandeira de O Martelo (Sei que amanhã quando acordar/ouvirei o martelo do ferreiro/bater corajoso/o seu cântico de certezas”). Canções de arranjos requintados e diversificados, como em Quadras, de Álvaro Moreyra, a 13ª, que fecha o repertório, percussão e violoncelo, com uma interpretação perfeita de Suzana Salles cuja voz é mais um instrumento no disco.

Um projeto surpreendente, não apenas pela concepção, mas por ainda se fazer música com tamanha excelência num país que se torna a cada dia terra culturalmente arrasada.


Poeta incluídos em Jogos da Noite:

Cruz e Souza (1861-1898), Emiliano Perneta (1866-1921), Azevedo Cruz (1870-1905), Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), Da Costa e Silva (1885-1950), José Albano (1888-1923), Álvaro Moreyra (1888-1964), Eduardo Guimarães (1892-1928), Casimiro de Abreu (1839-1860)

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