quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O SAMBA: CANTANDO A HISTÓRIA DO BRASIL - PARTE 03

Por Mara Natércia Nogueira


Resumo: Neste  artigo,  pretende­se sugerir que  o samba,  um gênero musical brasileiro, é capaz de contar a história do Brasil, por meio de um viés  mais original,  mais criativo e mais autêntico.  Parte­se  da premissa segundo a qual uma compreensão mais ampla da trajetória e da identidade  do povo brasileiro,  pode ser obtida com as  letras  dos sambas  pois,  as  mesmas,  procuram retratar um “Brasil mais brasileiro” . A pretensão do artigo é a de  mostrar que, se, de  um lado,  o samba vem cantando o encontro das diferentes culturas e da miscigenação peculiar que, no Brasil,  foram capazes  de produzir uma originalidade típica que  deve  ser preservada, de outro lado, o samba também tem sido um modo de contar a história do povo brasileiro, na perspectiva crítica do modelo de colonização que nos foi imposto.

Palavras-­chave: samba,  identidade cultural,  identidade nacional,  miscigenação, colonização. 


O samba: expr essão de um canto que r etr ata uma “outra” história 

No tocante  às aspirações e lutas por liberdade, se recorrermos ao samba, é possível  identificar letras que retratam com maestria a luta dos negros para se livrar do cativeiro. Um exemplo é o célebre samba de Paulinho da Viola, “Uma História Diferente”:

A história desse negro
É um pouco diferente
Não tenho palavra
 Para dizer o que ele sente
Tudo aquilo que você ouviu
A respeito do que ele fez
Serve para ocultar a verdade
É melhor escutar outra vez

A imagem do negro, quantas vezes associada à de um povo fadado à submissão e desprovido de civilidade, é contraposta por Paulinho, ainda neste mesmo samba, de um modo que retrata nossa herança escravagista e, ao mesmo tempo, as lutas de resistência dos negros no Brasil:

Foi um bravo no passado
Quando resistiu com valentia
Para se livrar do sofrimento
Que o cativeiro infligia

O significado da resistência aparece, ainda, ligado à contribuição dos negros à história  de formação do povo brasileiro. Por meio da  arte, da religião e  até da culinária, os negros  foram disseminadores  dos  valores  da tradição,  ao mesmo tempo em que imprimiram o sentimento de liberdade, tal como é cantado neste mesmo samba:

E apesar de toda opressão
Soube conservar os seus valores
Dando em todos os setores da nossa cultura
A sua contribuição

Guarda contigo
O que não é mais segredo
Que esse negro tem história, meu irmão
Pra fazer um novo enredo


O compositor Aurinho da Ilha, em “História da Liberdade no Brasil” 9 , interpretado por Martinho da Vila, também procura resgatar os fatos históricos ligados às lutas por liberdade, resgatando as personagens que estiveram à frente da resistência à opressão:

Quem por acaso for folhear a História do Brasil
Verá um povo cheio de esperança
Desde criança
Lutando para ser livre e varonil
Do nobre Amadeu Ribeira

O homem que não quis ser rei
A Manoel, o bequimão
Que no Maranhão
Fez aquilo tudo que ele fez

Nos Palmares  Zumbi, um grande herói
Chefia o povo a lutar
Só para um dia alcançar
Liberdade

Quem não se lembra
Do combate aos Emboabas
E da chacina dos mascates
O amor que identifica
O herói de Vila Rica
Na Bahia são os alfaiates
Escrevem com destemor
Com sangue, suor e dor
A mensagem que encerra o destino
De um bom menino


O samba  “Como Era Verde  o Meu Xingú”  10 ,  ao cantar as  belezas  da natureza, no tempo em “o verde era mais verde”, numa alusão aos tempos pré-­coloniais, canta, também, a  liberdade dos índios, quando estes ainda eram os senhores das terras. 

Emoldurado em poesias
Como era verde o meu Xingú, meu Xingú
Suas palmas que beleza
Onde encantava o uirapurú

Palmeiras, carnaúbas, seringais
Cerrados, florestas e matagais

Oh, sublime
Oh, sublime natureza
Abençoada pelo nosso Criador, Criador
Quando o verde era mais verde
E o índio era o senhor
Camaiurá, calabar e caicurú
Cantavam os deuses livres no verde Xingú 


A colonização que nos foi imposta e a referência à aculturação sofrida pelos povos indígenas é retratada neste mesmo samba que também canta a revolta à invasão sofrida. É possível, ainda, identificar neste samba um apelo à preservação ambiental e à “união dos povos da floresta” que, mais tarde, seria o lema de Chico Mendes e do movimento político pela preservação da Amazônia.

Mas quando
Quando o homem branco aqui chegou
Trazendo a cruel destruição
A felicidade sucumbiu
Em nome da civilização
Mas, mãe natureza
Revoltada com a invasão
Seus camaleões guerreiros
Com seus raios justiceiros
Os caraíbas expulsarão
Deixe a nossa mata sempre verde 
Deixe o nosso índio ter seu chão 

À  luz  dos  sambas  que  cantam o que estamos  chamando aqui de  “outra” história, valeria interrogar o lugar do termo “civilização”, remetido aos acontecimentos históricos da  formação do povo brasileiro,  uma  vez  que, em nome  de  um projeto de  civilização,  povos  inteiros  foram dizimados,  enquanto outros  foram totalmente  subjugados.  Atentemo­-nos,  então, aos dois significados básicos norteadores da definição que estamos buscando:

No primeiro,  a civilização é considerada como uma forma de cultura,
onde civilização e cultura são sinônimos, quando a cultura se apresenta
com expressivo grau de complexidade caracterizada por  elementos
e traços  “qualitativamente  mais  adiantados e que podem ser
medidos por alguns critérios de progresso”. No segundo, civilização e cultura
se contrastam, “cultura muda seu significado para passar a ser  as  ideias
e criações  humanas  relacionadas com mito, religião,  arte  e literatura,  enquanto
que a civilização fica sendo o campo da criatividade humana relacionada
com tecnologia e ciência”. (DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 1987, p.189).  


Desde o final do século XVIII e início do século XIX, há um consenso em torno da ideia de que civilização diz respeito a uma forma de cultura diferente de outras, em termos qualitativos. Explica­-se esse fato fundamentando-­se na justificativa de que civilização significava o próprio ato de civilizar povos não-­ocidentais, levando-­os a assimilarem os mesmos valores e costumes dos europeus. Esse fenômeno que a antropologia denomina de etnocentrismo, marcou, como bem o sabemos, o processo de colonização do Brasil.

Por meio da imposição de modelos culturais europeus, implantou-­se no Brasil uma visão de mundo na qual o que era considerado o melhor e o mais correto, estariam ligados aos valores europeus e, dessa forma, todos os outros passaram a ser avaliados à luz dos parâmetros da cultura européia. Ora, a tendência do homem em ver o mundo através de sua cultura – visão etnocêntrica – traduz­se num fenômeno universal, onde há a crença de que a própria sociedade seja o centro da humanidade. Assim, a humanidade deixa de ser a referência em detrimento de um grupo particular. O problema é que, “tais crenças contêm o germe, do racismo, da intolerância, e, freqüentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros” (LARAIA, 2003, p. 72­73).

Um contraponto, porém, à ideologia do etnocentrismo, pode ser vislumbrada à luz do samba que traduz, como procuramos demonstrar, o ideal de liberdade, a alegria e a resistência do povo brasileiro. Contudo, o samba da cidade e o samba do morro, ainda que tenham sido apropriados como símbolos da identidade nacional, são uma promessa de diálogo intercultural, no sentido de reciprocidade e de convivência interétnica, capazes de promover uma manifestação autêntica das culturas populares, enquanto expressão da pluralidade cultural existente no universo brasileiro.

O samba como um símbolo nacional, na década de 1930 e em várias partes do mundo, exaltava o sucesso que este gênero musical alcançava na América do Norte, através da voz e da figura marcante de Carmem Miranda, como se pode ver em “Brasil Pandeiro”

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana
Melhorou seu prato
Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará
Na Casa Branca
Já dançou a batucada Com ioiô e iaiá
Brasil
Esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar
Há quem sambe diferente
Noutras terras, outra gente
Num batuque de matar
Batucada
Reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressões que não têm par. 


À guisa de conclusão e retomando o nosso ponto de partida, pode­se afirmar que o tema da identidade cultural articulado à riqueza das expressões musicais que se revelam por meio do samba, se  por um lado,  põe  em questão: quem somos  nós? por outro,  como se  procurou mostrar, as identidades étnicas são um potencial rico de análise, para se entender as  relações  entre o particular e o universal,  buscando­se  assim novos  caminhos  para  os  relacionamentos sociais e humanos nestes tempos de “globalização”. Por isso, nada melhor do que esse exercício antropológico de refletir sobre a construção das identidades no Brasil por meio de uma de suas mais vivas expressões: o samba. Como ensina Lévi­Strauss, 

cada cultura desenvolve-­se graças  a seus  intercâmbios
com outras culturas, mas  é necessário que cada uma oponha
certa resistência a isso, caso contrário, logo não terá
nada que seja  propriedade particular  para trocar.
A  ausência  e o excesso de comunicação tem um e outro seus riscos
(apud SOUZA, 1998, p. 50­51).  

É por isso que, calar o samba é apagar a história real, a “outra” história, de paixões e  lutas,  de conquistas e  perdas,  de derrotas  e  vitórias do povo brasileiro. Calar o samba, por outro lado, pode  obstruir o processo de  abertura  por meio do qual  o nosso país  pode  relacionar­se com outros e oferecer o que ele tem de melhor: sua arte, sua cultura, seu senso  estético, sua criatividade, “expressão que não tem par”. 




Referências
ALVES, Henrique  Losinskas.  Sua  Excelência  – O  Samba, 1976, 2ª  ed..  São Paulo, ed.  Símbolo.
BRANDÃO, Carlos  Rodrigues. Identidade  & etnia – construção da  pessoa  e resistência  cultural. São Paulo : Brasiliense, 1986.
DICIONÁRIO  DE CIÊNCIAS  SOCIAIS  /  Fundação Getúlio Vargas,  Instituto de  Documentação; Benedicto Silva, coordenação geral; Antônio Garcia de Miranda Neto . . . / et  al. / 2ª ed. , Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. XX, 1422 p. 14 
DAMATTA, Roberto.  “Digressão: A Fábula das Três Raças, ou o Problema do Racismo à  Brasileira”. In: Relativizando: Uma Introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro. Editora  Rocco, 1987, Cap.7, pp. 58 – 85.
FREIRE, Gilberto.  Casa Grande  Senzala. 4ª  ed.  Rio de  Janeiro,  José  Olímpio,  1943.  In:  DICIONÁRIO  DE CIÊNCIAS  SOCIAIS  /  Fundação Getúlio Vargas,  Instituto de  Documentação; Benedicto Silva, coordenação geral; Antônio Garcia de Miranda Neto . . . / et  al. / 2ª ed. , Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1987. XX, 1422 p.  
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós­Modernidade. Tradução de Tomáz Tadeu da  Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro. DP&A Ed., 1997.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed., 2003.
NAVES, Santuza Cambraia. Almofadinhas e Malandros. In: Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro – RJ, p. 22 ­ 27. Ano 1, n° 08, fevereiro / março 2006.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e  identidade  nacional.  3 a .  ed.  São Paulo: Brasiliense, 1985.
SOUZA,  Maria  Luiza  Rodrigues.  Globalização: apontando questões  para  o debate. In: Memória. FREITAS, Carmelita Brito de (org.). Goiânia : Ed. UCG, 1998, pp. 49­54. 

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