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sábado, 30 de setembro de 2017

PETISCOS DA MUSICARIA

MULHERES CANTORAS E COMPOSITORAS DE PERNAMBUCO

Por Joaquim Macedo Junior


Marinês

A diferença de Marinês (e sua gente) para Almira e Anastácia – nossos personagens anteriores -, é que, embora também casada com músico – o paraibano de Taperoá, o excelente Abdias dos 8 Baixos -, é provável que tenha sido mais famosa que seu parceiro de grupo, ao menos na mídia nacional.

Inês Caetano de Oliveira era o nome de nascimento de Marinês, nascida em São Vicente Ferrer-PE, em novembro de 1935 e morta em maio de 2007, no Recife, aos 71 anos. Seu sepultamento se deu em Campina Grande, na Paraíba.

Marinês morou em Campina e fez sua carreira quase toda no sertão da Borborema.

Cantora, seu repertório incluía forró, xaxado, baião, entre outros ritmos. Filha de pai seresteiro, iniciou a carreira na banda “Patrulha de Choque” do Rei do Baião, que formou com o marido Abdias e o zabumbeiro Cacau, para se apresentar na abertura dos shows de Luiz Gonzaga.


“Peba na Pimenta”, de João do Vale, Adelino Rivera e José Batista


Foi em 1956 que gravou o primeiro disco à frente do grupo “Marinês e sua Gente”, com o qual se consagrou. A canção que marcou Marinês no início foi “Peba na Pimenta”, de João do Vale, José Batista e Adelino Rivera, causando polêmica na época que foi gravada, devido ao seu duplo sentido. Ela aparece cantando a música no filme “Rico ri à Toa”, de 1957.

Então, eu digo: “Imaginem de fosse hoje, com esse falso moralismo que nos assola”.


“Peba na Pimenta”, gravação de 1957, com João do Vale


Leia esse importante depoimento do pesquisado Ricardo Cravo Albin. Eis: “Marinês merece – e sempre mereceu – todas as homenagens que nossos ouvidos, às vezes por demais urbanizados, se negam a prestar ao nordeste e a seu povo. Ainda sobre essa coisa abominável, que é o preconceito contra o simples, o puro, o visceral, a raiz, assaltou-me inda agorinha uma conversa lapidar com o sábio Luiz da Câmara Cascudo.

Dele ouvi, numa das últimas visitas que lhe fiz em Natal, mais ou menos o seguinte:

“ – Mas, mestre, e esses críticos que ridicularizam a música de raiz, dizendo que raiz é mandioca crua, que só dá dor de barriga, se comida?”

“ – Não se avexe, não, meu filho. Esses pobres diabos não sabem nada de nada, ao propor frases idiotas para maus propósitos. E de mais a mais, comer macaxeira só faz bem e dá sustança, tanto quanto a música de raiz. Não esqueça que é ela que sustenta e molda o caráter nacional.

Negá-la é negarem-se os pilotis do Brasil, para ficar só com o forro. Muitas vezes de material tão ruim, que qualquer ventinho mais afoito leva lá pros cafundós.”

Na semana seguinte, já no Rio, visitei outro brasileiro monumental, Luiz Gonzaga. Contei-lhe da conversa com Cascudo, que de imediato o comoveu.

E enquanto Gonzaga desembaçava os óculos suados pela emoção incontida, fez-me um pedido surpreendente:“ – Pois o senhor saiba que eu preciso de seu apoio para uma macaxeira de lei, pura raiz, que se chama Marinês, a quem estou convidando para uma turnê comigo pelo país todo.”


“Pisa na Fulô”, de Ernesto Pires e João do Vale


Além de João do Vale, Gonzaga, Abdias dos 8 Baixos, Marinês gravou Antonio de Barros, Vicente Barreto, Alceu Valença, João Silva, Nando Cordel, Lenine, Geraldo Azevedo em 35 discos originais lançados em toda a carreira.

Semana que vem, tem mais.

MEUS CAROS AMIGOS

Por Ricardo Moreira



Em 1976, ano em que foi lançado "Meus Caros Amigos", o Golpe Militar completava 12 anos e Chico Buarque de Hollanda - 32 anos, casado com Marieta Severo e pai de três meninas - ainda carregava nas costas a sina de ser “o nosso Errol Flynn” – como definiu Glauber Rocha pela ótica cinematográfica, dois anos antes. A essa altura a imagem de paladino da liberdade e o intrépido figurino capa-e-espada que Glauber e a nação tinham orgulho em lhe emprestar, não eram mais do seu tamanho.

Capa do Disco "Meus Caros Amigos" (1976)


Chico era muito maior do que tudo isso, mas difícil também era fechar os olhos a um Brasil perverso presidido pelo quarto militar onde atos simbólicos como a recusa do Prêmio Molière pela peça Gota d’água que escreveu com Paulo Pontes, ainda eram necessários para lutar contra a navalha da censura. Um país onde morria de forma suspeita, naquele mesmo ano, a estilista e mãe-coragem Zuzu Angel – que partia sem saber que destino fora dado a seu filho. Na obra de Chico, Zuzu e seu drama apareceriam duas vezes. A primeira no desesperado acalanto “Angélica”, em parceria com Miltinho e gravado por Chico apenas em 81, e na letra de “Cálice” – parceria com Gilberto Gil – no verso: “quero cheirar fumaça de óleo diesel / Me embriagar até que alguém me esqueça...”. Uma clara referência à morte de Stuart Angel que depois de torturado, teria sido arrastado com a boca no cano de descarga de um jipe da aeronáutica até morrer por asfixia. Era difícil calar.

A conta desse ativismo “visceral” era muitas vezes paga com a subestimação de suas primorosas melodias e do lirismo de suas canções. Tudo em favor de versos que davam voz aos anseios de liberdade àqueles brasileiros que tinham o privilégio e o desconforto de saberem o que se dava nos subterrâneos da liberdade, nas veias de um país abertas por tenebrosas transações. Se Chico por um lado precisava ser episodicamente resgatado do papel indesejado de “cantautor revolucionário”; já contra o forjado duelo estético com a Tropicália dos festivais, ele havia se vacinado tanto pelo arranjo primoroso do tropicalista Rogerio Duprat para “Construção” em 1971, quanto pelo histórico disco “Caetano & Chico - Juntos e Ao Vivo” de 1972.

Caetano e Chico - Juntos e Ao Vivo (1972)


Ainda perseguido pela incansável lupa da censura em “Calabar, O Elogio da Traição”, depoister-se camuflado dela em personagens fictícios como Julinho da Adelaide em “Sinal Fechado” e coadjuvado numa temporada e disco históricos com Maria Bethânia no Canecão, o artista estava pronto para continuar a aviar notícias frescas para novos e para caros amigos através de sua obra-prima de 1976. 

Meus caros amigos está no olho do furacão da discografia de Chico Buarque. Por se tratar de um disco, segundo ele próprio definiu os álbuns dos anos 1970, que tem “alguma coisa de abafado”, ele está num ponto intermediário entre o começo do sufoco de “Construção” e as janelas abertas a partir de “Chico Buarque” de 1978, quando a censura afrouxava e o projeto “lento e gradual” da Abertura começara.

Capa dos discos "Calabar" (à esquerda) e "Construção" (à direita)


Caía então como uma luva a influência ensolarada de Cuba na estupenda faixa de abertura “O que será”. A encomenda fora feita pelo diretor Bruno Barreto para Dona Flor e Seus Dois Maridos – uma adaptação cinematográfica do romance homônimo de Jorge Amado. Chico atendeu não só com uma obra-prima, mas com três “o que serás” subintitulados: Abertura, “À flor da pele” e “À flor da terra” para situações distintas do roteiro. O ensaio do cubaião, como ficou apelidada a música pela mistura rítmica caribenha e nordestina, encantou Milton Nascimentoque a ouviu por acaso ao passar pelo estúdio em que Chico ensaiava com o arranjador Francis Hime. Assim se deu o dueto histórico que teve o convite retribuído pelo mineiro em seu disco “Geraes”, onde Chico participa na versão à flor da pele de “O que será”.

“Mulheres de Atenas”, faixa dois do disco, foi composta também sob encomenda para a peça de mesmo nome do dramaturgo Augusto Boal - parceiro de Chico na canção. Ao espelhar a humilhação, abuso e a exploração feminina na remota sociedade grega a música aviva produtivamente o debate sobre o tema no mesmo 1976 em que a Academia Brasileira de Letras passa a aceitar mulheres em seus quadros e seis anos após a ativista Betty Friedan queimar sutiãs em Nova York.

“Olhos nos olhos” segue no mote da libertação feminina da submissão. Sucesso estrondoso no mesmo ano com Maria Bethânia, a balada evidencia o poder quase mediúnico de Chico em se transportar em verso para o universo do sexo oposto com naturalidade e identificação espantosas. 

“Você vai me seguir” – parceria com o cineasta Ruy Guerra - é ainda uma canção, que pelo caminho poético inverso como em “Mulheres de Atenas”, mostra quadro a quadro o poder subterrâneo do sexo “frágil”. Parte da trilha da peça “Calabar” – a belíssima toada conta ainda com um magistral trabalho vocal do MPB-4.

Hugo Carvana descolou “Vai trabalhar vagabundo” em 1975 para trilha de seu filme homônimo que contava a história de um malandro, o próprio Carvana, libertado da prisão. Chico não perde a viagem e salpica a música de críticas sociais pautadas pelas misérias do dia a dia do trabalhador brasileiro.

O samba “Corrente” é um universo paralelo que rescende ao mesmo concretismo pavimentado em “Construção” cinco anos antes. Como se fosse um playmobil poético, sua letra brinca de mover versos desvendando novos significados que o próprio ouvinte pode livremente atribuir. Apesar de ser “um samba bem pra frente”, como diz o primeiro verso, desafiando subliminarmente os militares em sua campanha institucional Este é um país que vai pra frente e de quebra a marchinha ufanista também usada pela Ditadura - “Pra frente, Brasil” da Copa de 70, a genialidade de Chico cria uma espécie de marcha-ré melódica e harmônica em que se tem a sensação clara de retrocesso. Uma obra-prima de concepção. 

“A noiva da cidade” e “Passaredo” foram compostas com Francis Hime para o filme A noiva da cidade, de Alex Viani. Na primeira o belo samba sonha com o amor de uma distraída menina-moça, enquanto a segunda é um verdadeiro tratado ornitológico que fez com que Chico pesquisasse em dicionários científicos os nomes de pássaros para compor a rica fauna da letra.

A intensa e errática “Basta um dia” é originalmente da peça Gota D’água, escrita com Paulo Pontes que tinha Bibi Ferreira no papel principal, foi também para o disco do mesmo ano da sambista Clara Nunes no esteio de seus costumeiros passeios à MPB.

O exilado político Augusto Boal – falecido em 2009 – aparece novamente desta vez como destinatário da carta-choro “Meu caro amigo” que Chico compôs também com Hime e inspira o nome do disco. O resultado da conversa entre melodia e letra brilhantes com arranjo de Francis para o regional de choro liderado pelo virtuosismo da flauta de Altamiro Carrilho, é arrebatador e definitivo.

Apesar da asfixia daqueles tempos de opressão, o sentimento que fica depois da leitura dessa carta libertária chamada “Meus caros amigos” é um intenso orgulho de ter Chico Buarque de Hollanda como patrício e, porque não dizer, caríssimo amigo.

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