domingo, 27 de março de 2016

MEMÓRIA MUSICAL BRASILEIRA

Por Luiz Américo Lisboa Junior 


Chico Buarque de Holanda - Construção (1971)


O ano era 1967 e o mundo girava em torno de "era um garoto que como eu amava os Beatles e os Roling Stones". A guerra do Vietnã era o assunto do dia entre os pacifistas. Os sinais de que o Brasil iria mergulhar numa restrição total de direitos individuais pareciam cada vez mais próximos, os festivais de música popular faziam a juventude intelectualizada da época extravasar suas ideologias, o rei Roberto Carlos seguia a frente de sua corte, e Millor Fernandes dizia que a única unanimidade nacional era Chico Buarque. E isso iria fazer a diferença muitos anos depois quando o amadurecimento musical desse artista fundamental da música brasileira reforçaria essa afirmativa indiscutível. Chico é realmente uma unanimidade! 

Se me fosse dado sem controvérsias uma opinião, eu diria que a música popular brasileira tem em Pixinguinha, Ary Barroso, Tom Jobim e Chico Buarque suas maiores referencias, pois cada um a seu tempo soube captar o nosso sentimento mais íntimo, traduzir a nossa alma verdadeira e universalizá-la, angariando os aplausos sem restrições de quem quer que seja, filhos desta terra ou não. 

Essa pequena introdução é apenas para analisar um disco fundamental da nossa música popular lançado em 1971 quando ainda se vivia na contradição de crescimento econômico misturado com ingredientes de torturas e arbítrio. Parece difícil acreditar que numa época em que todas as canções eram encaminhadas para uma análise do departamento de censura da Polícia Federal. Uma em especial, tivesse sido aprovada sem cortes, trata-se de Construção de Chico Buarque, que da título a seu LP lançado naquele ano, o primeiro após seu retorno do exílio. 

Considerada uma obra-prima de nossa canção popular, a música foi encaminhada aos censores por João Carlos Muller Chaves, advogado da gravadora Polygram, e escolado como estava em ver vetadas várias letras de Chico Buarque resolveu utilizar uma estratégia arriscada a fim de liberar a música, solicitando aos censores que a proibissem, estes, a fim de contrariá-lo liberaram o texto na íntegra e "Construção" pode ser gravada sem cortes ou emendas. 

Amou daquela vez como se fosse a última 
Beijou sua mulher como se fosse a última 
E cada filho seu como se fosse o único 
E atravessou a rua com seu passo tímido 

Subiu a construção como se fosse máquina 
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas 
Tijolo com tijolo num desenho mágico 
Seus olhos embotados de cimento e lágrima 

Sentou pra descansar como se fosse sábado 
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe 
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago 
Dançou e gargalhou como se ouvisse música 

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado 
E flutuou no ar como se fosse um pássaro 
E acabou no chão feito um pacote flácido 
Agonizou no meio do passeio público 

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego 

Amou daquela vez como se fosse o último 
Beijou sua mulher como se fosse a única 
E cada filho seu como se fosse o pródigo 
E atravessou a rua com seu passo bêbado 

Subiu na construção como se fosse sólido 
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas 
Tijolo com tijolo num desenho lógico 
Seus olhos embotados de cimento e tráfego 

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe 
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo 
Bebeu e soluçou como se fosse máquina 
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo 

E tropeçou no céu como se ouvisse música 
E flutuou no ar como se fosse sábado 
E se acabou no chão como um pacote tímido 
Agonizou no meio do passeio náufrago 

Morreu na contramão atrapalhando o público. 

Mas apesar de ser a música principal, o novo disco trazia ainda novidades que se tornariam clássicas de nosso cancioneiro. Como por exemplo, "Cotidiano" que relata a rotina de um casal, explorando a tensão vivida pela mulher e a resistência do marido em suportar o dia a dia. E "Samba de Orly" feita ainda no exílio com Vinícius de Moraes e Toquinho, que teve alguns de seus versos vetados. Em vez de, "pede perdão pela omissão um tanto forçada" acabou saindo, "pede perdão pela duração dessa temporada". Tenta-se mudar o sentido, mas não o seu conteúdo, e assim ela seguiu adiante com êxito sendo depois regravada com seu texto original. 

Vinícius de Moraes, que a esta época estava muito próximo de Chico Buarque, une-se a ele mais uma vez e faz um poema de amor lírico, bem ao seu estilo. E assim surge "Valsinha", uma das mais singelas composições de Chico e mais um clássico de seu repertório. Também com Vinícius, assina "Desalento", outro bom momento do disco. Nesse LP memorável ainda há espaço para uma versão de uma canção italiana de Dalla e Palotino denominada "Gesubambino", transformada por Chico Buarque em "Minha história" que lhe trouxe também alguns problemas com a censura e com a parte mais ortodoxa da igreja católica que via uma afronta à menção ao nome de "menino Jesus" misturado a cabarés, ladrões, bar e bebidas. 

Por fim devemos mencionar como grandes sucessos do disco, "Olha Maria" feita com Tom Jobim e Vinícius de Moraes, "Deus lhe pague" que serve como uma continuidade a "Construção", uma cantiga de ninar, "Acalanto" e um desabafo em "Cordão", cujos versos finais são a demonstração de seu estado de espírito naqueles anos difíceis: "Ninguém vai me acorrentar/enquanto eu puder cantar/enquanto eu puder sorrir/enquanto eu puder cantar/alguém vai ter que me ouvir". 

Retirar um único disco da obra de Chico Buarque é tarefa ingrata, pois todos os que gravou são importantes. Porém, Construção retrata não só seu talento em grande fase, como também uma época da música brasileira onde se faziam ainda discos e músicas inesquecíveis. 

Músicas: 
01 - Deus lhe pague (Chico Buarque de Holanda) 
02 - Cotidiano (Chico Buarque de Holanda) 
03 - Desalento (Chico Buarque de Holanda - Vinícius de Moraes) 
04 - Construção (Chico Buarque de Holanda) 
05 - Cordão (Chico Buarque de Holanda) 
06 - Olha Maria (Tom Jobim - Vinícius de Moraes - Chico Buarque de Holanda) 
07 - Samba de Orly (Chico Buarque de Holanda - Vinícius de Moraes - Toquinho) 
08 - Valsinha (Chico Buarque de Holanda - Vinícius de Moraes) 
09 - Minha história (Dalla - Palotino – Versão de Chico Buarque de Holanda) 
10 - Acalanto (Chico Buarque de Holanda) 


Ficha Técnica
Direção de produção: Roberto Menescal
Direção de estúdio: Roberto Menescal 
Técnicos de gravação: Toninho e Mazola
Estúdio: Phonogram
Direção musical: Magro
Foto: Carlos Leonam
Capa: Aldo Luiz
Participação especial: Tom Jobim, Paulinho Jobim e MPB4

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