segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

A VIDA LOUCA DA MPB (ISMAEL CANAPPELE)*

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SEXO, DROGAS, MPB E ILUMINAÇÕES

Das formas mais diversas e por diferentes motivos, a heterogênea constelação da MPB, com estrelas (e alguns cometas) que vão dos anos 1930 aos 2000, teve vida louca. Vidas muito loucas e, quase sempre, abreviadas por mortes precoces. Personagens reais, que agora se encontram neste livro principalmente pelas carreiras brilhantes, atuações e obras que inspiram tantas outras vidas. Em meio ao turbilhão de emoções, pressões, turbinados/detonados por drogas (legais e ilícitas), enfrentando preconceitos, amando e sofrendo muito, quebrando barreiras, esses dezessete artistas viveram intensamente, fundaram escolas, revolucionaram estilos, encantaram multidões e continuam sendo referência para qualquer um interessado na diversificada música popular brasileira. São histórias, muitas com mais de uma versão na cada vez maior bibliografia musical brasileira, recontadas a partir de uma perspectiva distanciada, sem dourar as pílulas ou esconder os vexames. Podem mudar as estações, as modas e as tecnologias, mas a essência complexa do ser humano continua a mesma, como mostra nesta obra o jovem escritor (e, tudo embaralhado, ator, roteirista, músico) Ismael Caneppele. Gaúcho cosmopolita, no início do século XXI, entrando em seus vinte anos, trocou a Lajeado natal por uma vaga numa peça que Gerald Thomas montava em São Paulo. Uma década e meia depois, novamente baseado no Rio Grande do Sul após temporadas em São Paulo e Berlim, ele roda o mundo, fisicamente e/ou através da carreira. Entre outros feitos, publicou quatro livros de ficção, textos em blogs e colunas na grande imprensa e foi roteirista (além de um dos protagonistas) do longa-metragem Os famosos e os duendes da morte (lançado em 2009, vencedor de dez prêmios no Brasil e no mundo, dirigido por Esmir Filho). Desafiado a perfilar esses vidas-loucas, Ismael tanto mergulhou na história de algumas personalidades que fizeram a trilha de sua adolescência e juventude – contemporâneos como Cássia Eller, Renato Russo, Cazuza e Itamar Assumpção – quanto foi atrás de gente da qual tinha menos referências, algumas vagas ou caricatas. Da hollywoodiana Carmen Miranda ao play boy assexuado carioca Mario Reis, passando pela antitética soturna e iluminada May sa, pelo múltiplo e contraditório Vinicius de Moraes, pelo sambista protopunk Noel Rosa, pelo sambista-blues Nelson Cavaquinho, pelo fenomenal cantor e lamentável aliado da ditadura militar Wilson Simonal… O retrato desses artistas, segundo Ismael, não cai na apologia da loucura pela loucura, sequer investe na condenação. Para o caso da droga, por exemplo, vale o ditado popular de que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Seja legal ou ilegal, o segredo é saber usar. Tim Maia foi um que, definitivamente, nunca soube. Mas esse exemplo ruim até para usuários, irresponsável, doidão sem limites, sempre exagerando na dose e que poderia ter virado número nos índices de deliquência juvenil antes de começar a criar tão intensa e musicalmente, não é maior do que o artista. Estamos falando dele porque brilhou como o primeiro brasileiro a fundir samba e baião com o soul e o funk dos negros norte-americanos. De Racionais MCs a Criolo ou Emicida, não há quem esteja fora de seu raio de influência. Como Cazuza no pop brasileiro, que de mais uma dose de tudo, claro, sempre esteve a fim, até que seu trajeto cada vez mais ousado na arte e na vida foi podado pela aids. Aos 32 anos, o autodenominado Exagerado foi uma das vítimas da “tuberculose do fim do século XX”, numa possível conexão com Noel, que, nos anos 1930, ainda sem a penicilina, teve sua “peste cinzenta” potencializada pelo cotidiano de orgias. No entanto, muito além desse paralelo natural e mórbido, Noel e Cazuza devem ser reverenciados como agudos cronistas de suas realidades, levando a poesia das ruas para as canções. Noel emburacou em noitadas regadas a muito álcool, alguma cocaína (que até ser proibida no Brasil em 1921 era vendida como remédio) e muito samba. Ou melhor, foi um dos inventores do samba urbano carioca, feito que, em outra quebra de paradigmas, ocorreu graças ao estreito convívio com artistas afro-brasileiros como Cartola e Ismael Silva. Algo impensável para um jovem da classe média branca no Rio de Janeiro daqueles tempos. Como estamos cansados de saber, a combinação de tuberculose e compromisso zero com uma vida regrada transformaram o Poeta da Vila no precoce (aos 26) precursor do Clube dos 27 – que reúne os roqueiros mortos nessa idade, numa lista que inclui Brian Jones, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Kurt Cobain e Amy Winehouse. Sob a ótica da política de guerra às drogas (cada vez mais contestada no mundo contemporâneo), Cazuza, Tim Maia, Renato Russo, Júlio Barroso e Raul Seixas estariam entre as típicas vítimas do tráfico. Mas, para todos eles, o abuso do legalizado álcool teve papel tão ou mais nocivo. Já a partir do Poetinha, que, imerso no uísque e similares, muito viveu, amou e criou: “O melhor amigo do homem, o cachorro engarrafado”, segundo a máxima de Vinicius, também fez muitos estragos. Limpa, e careta até para o álcool nos primeiros anos de sucesso, Carmen Miranda é um exemplo de como a medicina usada sem critérios pode ser letal. Já nos Estados Unidos, no auge do estrelato, quando se tornou a artista mais bem-paga do mundo, a fim de suportar o volume de trabalho a Pequena Notável passou a viver movida a drogas legais. Era remédio para dormir, acordar, emagrecer ou ter apetite, prender ou soltar o intestino, numa rotina macabra que antecipou em décadas a similar dependência e degeneração física que abreviou a vida louca de Elvis Presley e Michael Jackson. Por sinal, Carmen foi o primeiro caso de “impersonator” na cultura pop, fenômeno que depois prosseguiu com os mesmos The Pelvis (em sua fase final e mais caricata) e Jacko. Como Ismael escreve, revolucionária em muitos aspectos de sua carreira, atropelando preconceitos raciais e sexuais, Carmen continua viva em sua obra ou na pele de milhares de drag queens ao redor do mundo. No campo do comportamento, outras três mulheres escaladas neste livro romperam muitos tabus. Dondoca destinada a viver sufocada no luxo de um casamento infeliz, a adolescente Maysa chutou o balde (e o sobrenome pseudo-aristocrático) para se firmar como a fabulosa intérprete imortalizada em disco. E ainda, quebrando um hiato de décadas, despontar como uma das grandes compositoras populares do Brasil. Mesmo tendo Chiquinha Gonzaga como pioneira – “Ô abre alas”, lançada em 1899, literalmente abriu caminho para as marchinhas carnavalescas –, só nos anos 1950, com o surgimento de May sa, a canção popular brasileira ganhou nova compositora de sucesso e relevância. Para aguentar o tranco e se adequar aos padrões do star system, entornou quantidades industriais de droga legal, ingeriu infinitas pílulas nos 50 tons de tarjas pretas, abusou de remédios de emagrecimento e cirurgias. Outra vítima de uma sociedade pra lá de machista, Dalva de Oliveira rompeu com o marido infiel (e parceiro nos palcos e estúdios) para cair na boca do povo. Roupa suja lavada em público através de muitas canções feitas sob medida para ela e contestadas pelas do ex, Herivelto Martins, antecipando para o bem e para o mal nossa época de reality shows. Escândalo e arte caminhando juntos, regados a porres e ressacas sem fim. Mesmo vivendo numa sociedade bem mais aberta, na qual pôde assumir sem véus a homossexualidade, Cássia Eller também não segurou a barra. Em dezembro de 2001, apesar do sucesso comercial e artístico, o coração frágil de nascença parou de bater, em parte devido a tantos abusos químicos e pressões emocionais. Mas seu exemplo de vida e arte só cresce desde então. A vitória de sua companheira, Eugênia, na disputa pela guarda definitiva do filho natural de Cássia com o avô materno do garoto criou jurisprudência para casos similares. Chicão foi criado pela mãe afetiva, reforçando os anseios de tantos casais homossexuais. Drogas legais ou ilegais não foram o maior problema na vida de Itamar Assumpção. Ele sofreu mais com preconceito racial, que, cotidianamente, destrói o mito do homem cordial brasileiro, e com a rejeição do mercado à sua revolucionária música. Uma arte que, como acontece nesses casos, desde sua morte por câncer em 2003, não para de ser admirada. Talvez, como Ismael relata, a maior loucura do Nego Dito tenha sido a última década de vida, cercado da mulher e das filhas numa casa na periferia de São Paulo onde, além da música, cultivava inocentes e belas orquídeas. Vale destacar ainda o foco que Ismael dá para personagens que tiveram sucesso restrito na vida, mas foram influências decisivas para seus contemporâneos e continuam sendo redescobertos pelas novas gerações. Cometas que deixaram rastros luminosos. Entre eles, Sérgio Sampaio, o capixaba que botou seu bloco em todo o Brasil, e o carioca planetário Júlio Barroso, que se perdeu de sua Gang 90 na selva de Sampa. Mas chega de spoilers. É hora de mergulhar nessas vidas loucas e apaixonantes! Antônio Carlos Miguel, crítico musical, jornalista e poeta.


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